O BRINQUEDO –
Paulina, uma menina de 5 anos de idade, perde os pais e o seu cachorrinho de estimação, em um ataque aéreo sobre a França, quando fugiam de Paris, ocupada pelos nazistas, durante a Segunda Guerra.
Ao se perder do grupo de refugiados, a órfã, completamente desvairada, vagando pelo campo e levando nos braços seu cachorrinho morto, é recolhida por Michel, um menino de dez anos, que a leva à fazenda dos pais, onde morava.
Enquanto seus pais estavam ocupados, ajudando aos necessitados, esqueciam de que o filho também precisava deles. Paulina e Michel criaram o seu próprio universo.
A órfã amargava a morte dos pais e do seu cachorrinho, Toli, seu único brinquedo. As perdas se fundiam numa só, provocando uma gigantesca dor, que lhe dilacerava a alma.
Na fazenda, onde foi acolhida pelos pais de Michel, a menina foi aconselhada por ele a enterrar o cachorro, antes que entrasse em decomposição. Juntos, procuraram um local discreto, entraram num terreno onde havia um moinho em ruínas, e lá, enterraram os restos mortais do cachorrinho.
Penalizado com a tristeza de Paulina, Michel fez com ela um pacto de que, naquele local, eles fariam um cemitério para os pequenos animais, que encontrassem mortos pelos caminhos. Esse segredo seria somente deles.
E os dois se empenharam numa “missão”, à procura de cruzes, para ornamentar as covas do cemitério de animais. Encontraram um velho cemitério de humanos e de lá retiraram cruzes dos antigos túmulos, levando-as para o cemitério secreto. Ali, passavam os dias, enterrando alguns animais que encontravam mortos, e brincando.
As duas crianças passaram a ter uma forte ligação fraternal, comungando do mesmo pensamento em relação à morte, com certo temor, respeito e, talvez, até com sentimento de admiração. Havia entre elas, uma identidade de almas, que somente a espiritualidade seria capaz de explicar.
A Cruz, o mais marcante símbolo da cristandade, na cabeça das crianças, seria apenas um elo de ligação entre a vida e a morte. Lembrava os momentos da vida, felizes e infelizes.
Acostumaram-se com a morte, por já terem estado frente à frente com ela, escapando como por milagre, nesses tempos de guerra.
Tornaram-se grudadas uma na outra, em face da escassez de amor que sentiam diante da vida; ela, por ser órfã de pai e mãe; e ele, em virtude dos pais terem esquecido de que o filho era quem mais precisava de atenção, amor e carinho. Muito mais do que os necessitados, a quem eles ajudavam todos os dias. Michel não era tratado com carinho pelos pais, como desejava. E o menino sofria com isso.
A morbidez gerada nessas crianças, pelos males da guerra, e a falta de orientação, as tornaram indiferentes a certos valores, como o respeito aos túmulos dos humanos do velho cemitério. As raras pessoas, que visitavam os antigos túmulos dos seus mortos, passaram a estranhar o sumiço das cruzes, mas não imaginavam que aquilo fosse obra de crianças, pois, normalmente, crianças não se interessavam por cemitérios.
O caso de Paulina e Michel era diferente. Os traumas da guerra fizeram com que eles se familiarizassem com as perdas. Na inocência própria das crianças, acostumaram-se a brincar com animais mortos, como consequência da carência afetiva e do sofrimento, que desde cedo conheceram.
Abriam as covas mais antigas, dos animais por eles enterrados, e até brincavam com os ossos que encontravam.
Não tinham noção da gravidade do que faziam.
A Cruz, símbolo religioso que representa a morte e o fim da vida, também não era brinquedo para crianças.
O resultado dessa brincadeira, no fim do dia, era o violento retorno da tristeza e o sentimento de abandono, no caso de Michel. No caso de Paulina, batia a saudade, e a vontade de ter seus pais e o seu cachorrinho de volta.
E os dois choravam juntos, olhando para o Céu, à espera de uma milagrosa aparição.
Somente saudade era o que a menina sentia.
E Paulina se apegou a Michel de forma doentia, dependendo dele emocionalmente. Quando ele se afastava, vendo-se sozinha, ela chamava por ele, quase em pânico, sentindo-se insegura e abandonada.
Violante Pimentel – Escritora
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