Chovia, chovia muito!

Chovia sem parar, chovia a cântaros, como diziam os antigos.

As águas transbordavam rios e montanhas e o Dilúvio chegara, avassalando o mundo.

Noé, sempre previdente, chama Sem seu filho e constroem a conhecida Arca, lá pelas bandas do Ararat.

Nesta gigantesca embarcação o velho Noé colocou um casal de cada raça animal, inclusive um cavalo e uma égua, que Carl Linaeus, séculos depois, em 1751, classificaria como equus ferus caballus.

Dizem que ao fecharem as portas da Arca de Noé, surgiu, intempestivamente, sozinho e solitário, o burro.

Sim, o asno, o desprezado jumento, dito jegue, falado jerico, que o sueco classificador oficial, mais tarde, chamaria de equus africanus asinus, em latim.

Conversa vai, conversa vem, entra não entra, sai não sai, Noé cansado daquela balbúrdia genera- lizada, manda Sem fechar a porta de entrada, deixando o burro de fora.

Eis que a égua, sempre atenta às coisas exteriores e frívolas, vislumbra no pobre e rejeitado burro, dotes físicos indescritíveis e sensuais, imaginando uma futura ménage à trois.

O pobre animal, já cabisbaixo, amuado, se aquieta, então.

– Deixa o burro entrar seu Noé, diz a égua. Eu cuido dele, apiedando-se!

– Sem, deixa então o burro entrar – diz Noé. Ele é um onagro lá da Abissínia.

– É pequeno, come pouco e é trabalhador.

– Pai, obtempera Sem, este negócio não vai dar certo! É ideia de jerico! E o cavalo como
fica?

– Isto não é problema seu. É assunto privado da égua…

– Aliás, dizem os gregos, à boca pequena, que o unicórnio nasceu na Arca de Noé…

A partir da Arca de Noé o burro passa a representar algo equívoco nas relações animais.

Burro é burro! – sinônimo de rejeição intelectual e serventia escravizada aos humanos.

Até os dicionários passaram a ser chamados de Pai dos Burros!

 

 

 

 

José Carlos Gentilli – Escritor, membro da Academia de Ciências de Lisboa e Presidente Perpétuo da Academia de Letras de Brasília

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