O DIREITO NA LINGUAGEM DO CINEMA IV –

Hoje, se Deus quiser, vamos encerrar esta nossa série de artigos sobre “o direito na linguagem do cinema” (afinal, serão quatro textos encarrilhados, e nem mesmo eu aguento mais escrever/falar sobre o assunto). Como prometido na semana passada, vou fazer este encerramento tratando de alguns recursos técnicos do cinema que superpontencializam, para o espectador, os dados sensoriais da vida real.

De fato, conforme explica Julio Cabrera em “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes” (Editora Rocco, 2006), comparado à literatura, o que o cinema proporciona é uma espécie de superpotencialização das possibilidades conceituais daquela (da literatura) “ao conseguir intensificar de forma colossal a ‘impressão da realidade’ e, portanto, a instauração da experiência indispensável ao desenvolvimento do conceito, com o consequente aumento do impacto emocional que o caracteriza. Certamente nada disso descarta, ab initio, a possibilidade de que um leitor de literatura tenha a sensibilidade adequada para se impressionar extraordinariamente com o que lê, com a mesma eficácia emocional do cinema. O que se diz tem um caráter genérico que não descarta estes casos particulares”. Entretanto, como conclui o citado autor, “o cinema é a plenitude da experiência vivida, inclusive a temporalidade e os movimentos típicos do real, apresentando o real com todas as suas dificuldades, em vez de dar os ingredientes para que o espectador (ou leitor) crie ele mesmo a imagem que o cinema proporciona”.

E o cinema faz isso através de recursos que lhe são próprios (mas não exclusivos, já que a literatura pode também fazer uso de alguns deles, embora sem a mesma facilidade, intensidade e efeito).

Um deles, por exemplo, é a “pluriperspectiva”, que, nas palavras de Julio Cabrera, “é a capacidade que tem o cinema de saltar permanentemente da primeira pessoa (o que vê ou sente o personagem) para a terceira (o que vê a câmera) e também para outras pessoas ou semipessoas que o cinema é capaz de construir, chegando ao fundo de uma subjetividade. (…) A pluriperspectiva pode ser considerada uma espécie de qualidade “divina” (ou demoníaca!) do cinema, no sentido da Onisciência e da Onipotência. Evidentemente, a montagem, a estratégia dos cortes, os movimentos de câmera etc. podem intensificar esta característica fundamental do cinema, que contribui grandemente para a eficácia do choque emocional”.

Usemos aqui, para ilustrar esse ponto, o caso de “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”, de 1962). A estória basicamente é contada, em singular “flashback”, pela filha pequenina do advogado Atticus Finch (personagem principal da trama), Jean-Louise, dita “Scout”, à época dos fatos com seis anos de idade, cuja voz, cheia de sotaque sulista, recorda eventos acontecidos há um bocado de anos. Com base nas “memórias” de Scout, em “O Sol é para Todos” enxergamos, de forma bastante lúdica e melancólica, inúmeros temas universais. De fato, a imaginação poética da infância encarando a realidade da vida dos adultos é uma circunstância que está intimamente ligada ao enredo do filme. Mas, ao acompanharmos o desenrolar do filme, também enxergamos sua temática pela perspectiva das famílias sulistas (a maioria de pequenos agricultores), que vivem os resultados da crise de 1929 na “velha e cansada cidade” (“tired old town”) de Maycomb, no estado do Alabama, estado em tudo ligado à escravatura, à Confederação e à Guerra Civil americana.

O caso de “O Sol é para Todos” também seria ilustrativo daquilo que o autor de “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes” registra como “a quase infinita capacidade do cinema de manipular tempos e espaços, de avançar e retroceder, de impor novos tipos de espacialidade e temporalidade como só o sonho consegue fazer”. Mas aqui podemos ir ainda mais longe sobre adequação do cinema para retratar fatos e temas relacionados ao direito, sobretudo naqueles chamados filmes de tribunal. Afinal, o que é um é um processo, e sobretudo um criminal, se não a análise retrospectiva de uma conduta juridicamente/penalmente relevante? O cinema, manipulando tempos e espaços, avançando e retrocedendo, quase ao vivo, reconstrói os fatos, nos apresenta e questiona as testemunhas, reanalisa as evidências, debate os argumentos das partes envolvidas, faz tudo de novo se necessário ou conveniente à trama/processo/julgamento, e por aí vai.

E o cinema consegue tudo isso fazendo uso do chamado “corte cinematográfico”, nas palavras do multicitado Julio Cabrera, “a pontuação, a maneira particular de conectar cada imagem com a anterior, a sequência cinematográfica, a montagem de cada elemento, o fraseado cinematográfico”, recurso que, nas mãos de uma direção de cinema talentosa e com recursos técnicos para tanto, pode fazer milagres.

Bom, comentados alguns recursos técnicos do cinema (não todos, evidentemente, pois a lista deles é muito maior) que superpontencializam os dados sensoriais da vida real para nós espectadores, devo, todavia, reconhecer o fato de que o direito, assim como a filosofia, se desenvolveu ao longo de sua história, fundamentalmente, na forma escrita. A prática do direito e o compartilhamento do saber jurídico se deram, não podemos negar a história, essencialmente com “a tinta posta no papel”. Se o direito é uma arte, se é um gênero literário, ela ou ele se fez (e ainda se faz), sem dúvida, através da escrita.

Mas tem de ser necessariamente assim? Ou tem de ser somente assim? Como indaga o autor de “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes”: “Existe alguma ligação interna e necessária entre a escrita e a problematização filosófica [no nosso caso, jurídica] do mundo? Por que as imagens não introduziriam problematizações filosóficas [ou jurídicas], tão contundentes, ou mais ainda, do que as veiculadas pela escrita?”. De minha parte, não enxergo qualquer coisa na essência do direito que o “condene” para sempre a se manifestar tão somente pelo meio da escrita como conhecemos. Pelo contrário. E, dito isso, viva o cinema!

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

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