O DIREITO NA LINGUAGEM DO CINEMA III –

Continuando esta nossa série de artigos sobre “o direito na linguagem do cinema”, hoje vou fazer uso, como insinuado nos artigos das semanas retrasada e passada, de assertivas constantes do livro “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes” (Editora Rocco, 2006), de Julio Cabrera, que, embora originalmente pertinentes à relação cinema/filosofia, podem muito bem ser adaptadas para fins de defesa da “minha” tese da conveniência de se estudar o direito através do cinema.

Uma primeira assertiva constante do citado livro, que achei muito interessante, é a de que, para se apropriar de um problema filosófico – e, no nosso caso, do um problema jurídico –, “não é suficiente entendê-lo: também é preciso vivê-lo, senti-lo na pele, dramatizá-lo, sofrê-lo, padecê-lo, sentir-se ameaçado por ele, sentir que nossas bases habituais de sustentação são afetadas radicalmente”. De fato, há frequentemente um componente “experiencial”, relacionado às nossas histórias de vida, que nos torna mais ou menos sensíveis e engajados com este ou aquele problema jurídico. Em não sendo possível viver todas as experiências, o cinema, com toda a sua dramaticidade, que nos faz “viver” a história/estória do filme, pode nos ajudar bastante no desenvolvimento dessa sensibilidade.

Tomemos o exemplo de “O Vento Será Tua Herança” (“Inherit the Wind”, de 1960), que, dirigido por Stanley Kramer (1913-2001), tem Spencer Tracy (1900-1967), Fredric March (1897-1975) e Gene Kelly (1912-1996) nos papéis principais. Ele põe na tela grande, adaptando a peça homônima de 1955 escrita por Jerome Lawrence (1915-2004) e Robert E. Lee (1918-1994) e com boas doses de ficção, o famoso “O Julgamento do Macaco”, de fato ocorrido nos EUA de anos atrás (1925). Na edição da peça que possuo (de 1960, da Bantam Books) é assim retratado o ambiente da “batalha legal do século”: “dia após dia, no calor de um tribunal lotado, os dois mais famosos oradores norte-americanos de então lutaram com os seus sólidos argumentos e os seus tremendos discursos. Drama como esse a América nunca tinha visto. Os espectadores ficaram encantados. Jornalistas cínicos tomaram lado e entraram também na luta. O juiz, o júri e o réu foram esquecidos enquanto os dois grandes oradores, outrora até amigos, explodiam e lutavam para destruir um ao outro. E a audiência ficou horrorizada quando um deles caiu morto no momento do seu discurso”. Isso bem posto na grande tela, é impossível não se “viver” a história e, mesmo inconscientemente, restar sensibilizado pela temática da intolerância religiosa, que é o pano de fundo do filme.

Em segundo lugar, temos a questão do apelo emocional inerente às narrativas cinematográficas, que nos faz tomar partido e nos apaixonar por uma tese e mesmo por toda uma temática jurídica. Certamente o cinema possui uma linguagem mais adequada que a linguagem da escrita pura, sobretudo a nossa enfadonha escrita técnico-jurídica, quase sempre marcada pelo tal “juridiquês”, para expressar nuances, intuições e elementos afetivos que também permeiam – e assim deve ser – o direito. Diferentemente da letra fria da lei e dos manuais de direito, os conceitos-imagem do cinema, como explica o autor de “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes”, Julio Cabrera, “por meio desta experiência instauradora e plena, procuram produzir em alguém (um alguém sempre muito indefinido) um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diga algo a respeito do mundo, do ser humano, da natureza etc. E que tenha um valor cognitivo, persuasivo e argumentativo através de seu componente emocional. Não estão interessados, assim, somente em passar uma informação objetiva nem em provocar uma pura explosão afetiva por ela mesma, mas em uma abordagem que chamo aqui de logopática, lógica e pática ao mesmo tempo”.

​Tomemos aqui dois exemplos. Primeiramente, o do advogado Atticus Finch, de “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”, de 1962), interpretado por Gregory Peck (1916-2003), que por esse papel ganhou o Oscar de melhor ator em 1963. Como registram Ernesto Pérez Morán e Juan Antonio Pérez Millán (em “Cien abogados de ayer e de hoy”, livro publicado pela Ediciones Universidad de Salamanca, 2010), “belo, generoso, sereno, sempre bem vestido, dedicado pai de dois filhos cuja mãe faleceu quatro anos atrás, Atticus Finch é um modelo de cidadão, admirado por seus vizinhos do condado de Macon que, em 1932, seguem sofrendo as consequências da quebra da bolsa de valores de 1929”. Essa personagem fictícia, provavelmente o advogado mais famoso da história do cinema, logo nos toma para o seu lado. Quase imediatamente nos tornamos adeptos da não violência e saímos do cinema confiantes – e, mais do que isso, empenhados nesse sentido – de que a Justiça um dia garantirá a igualdade, independente da cor da pele, a todos os cidadãos. Esse mesmo tipo de empatia também se dá com outro advogado da tela grande: Paul Biegler, de “Anatomia de um Crime” (“Anatomy of a Murder”, 1959), a principal personagem do filme, interpretada por Jimmy Stewart (1908-1997), arquétipo do advogado-herói de Hollywood que, com brilhantismo e perseverança, consegue para o réu um veredicto de “not guilty”. Aqui com um adendo que torna a coisa ainda mais interessante. Ao contrário do réu de “O Sol é para Todos”, o réu de “Anatomia de um Crime” é um mau-caráter e, segundo dá a entender o final do filme, deveras culpado. Mas assistindo ao filme, mesmo sendo contra o argumento de que o estupro justifica o homicídio, acabamos torcendo pela absolvição do réu, acredito que por uma enorme empatia para com o seu advogado. Aqui é digno de nota como o ator Jimmy Stewart gera, na audiência, esse tipo de sentimento. Talvez sempre o enxerguemos como em “Do mundo nada se leva” (“You Can’t Take It with You”, 1938) e “A felicidade não se compra” (“It’s a Wonderful life”, 1946), dirigidos pelo grande Frank Capra (1897-1991). O cinema tem dessas coisas, é verdade. Mas isso também nos leva a refletir até que ponto nossos julgamentos – e aqui falo da vida real – são influenciados por empatias e antipatias pessoais.

Na verdade, ao que tudo indica, isso se dá – falo da dramaticidade que nos envolve e da emoção que nos toca no cinema –, porque este (o cinema), muito mais que a literatura, possui alguns recursos técnicos (a pluriperspectiva, a capacidade do cinema de manipular tempos e espaços, o corte cinematográfico, os chamados efeitos especiais etc.) que superpontencializam, para o espectador, os dados sensoriais da vida real. Mas isso, ainda com a ajuda de Julio Cabrera e do seu “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes”, eu só vou explicar na semana que vem. Entendam como as “cenas do próximo capítulo”, por favor.

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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