O EMBAIXADOR –
Luiz entrou para o serviço diplomático brasileiro em 1947, tendo servido em Belgrado, (capital da antiga Iugoslávia), México, Guatemala, Egito, Dinamarca, Japão, Venezuela, Suriname e República Dominicana.
Até então, fora um jovem imaturo, que, por competência pessoal, furara as barreiras tradicionais, que fechavam o acesso à carreira diplomática brasileira, aos jovens que não pertencessem às elites dos estados mais influentes do Brasil, como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia. Uma vez admitido, logo visualizou que poderia realizar seu sonho de conhecer o mundo, para melhor compreender os problemas do seu país.
Fez os primeiros estudos em Natal, seguindo, depois, para Recife (PE), onde se formou em Direito.
Durante todo o tempo em que andou pelo mundo, como Embaixador, Luiz acalentou o sonho de voltar para Natal, na companhia tranquila da esposa Verônica e da filha Graziela, quando chegasse a época da sua aposentadoria. Elas sempre concordaram com as suas escolhas de posto, dentro dos estreitos limites que lhe permitia a fria administração que o comandava de longe. Natal representava a paz com que ele sonhava.
Depois de 40 anos fora do Brasil, Luiz foi aposentado pelo Itamaraty, retornando em 1985.
Pouco tempo depois, estava morando em Natal, na Praia do Meio, numa enorme casa que mandara construir.
Imaginava que Natal continuava a mesma cidade branca, cheia de tranquilidade. Sonhava caminhar descalço novamente pela areia da praia e poder mergulhar na imensidão do mar azul.
Para surpresa sua, da varanda da sua casa, o Embaixador podia observar, com a família, a interminável e diária partida de futebol de areia, na qual os inúmeros contendores se esforçavam para fazer “gols”, nas balizas dos dois grupos.
Sua mulher, muito detalhista, fez um comentário: “É curioso. Os jovens que disputam essas intermináveis peladas, sob este sol causticante, não são negros, embora pareçam. Na verdade, ou são índios ou mestiços de índios”.
Luiz parou para pensar e respondeu: “São os mesmos brasileiros que receberam aqui nestas praias, em 1500, os primeiros portugueses e os comeram. Quanto progresso houve, desse tempo pra cá, não é verdade? E todos riram da sua observação.
O Embaixador temia sofrer, em breve, um impacto visual, com a construção desenfreada de arranha-céus na Praia do Meio e com a cogitada construção de uma ponte, que cruzaria a barra, ligando a Praia do Meio à Praia da Redinha. Considerava essa ideia um absurdo, fruto da cabeça dos improvisados urbanistas das novas gerações.
De repente, a tranquilidade na casa de Luiz, na Praia do Meio, começou a sofrer as consequências de um tresloucado projeto da prefeitura de Natal, que visava transformar a praia de Iemanjá em Zona turística, com barracas imitando as da Bahia.
O Embaixador tentou solucionar esse sério problema, junto às autoridades competentes, mas não obteve êxito.
Para completar a perturbação, os “filhinhos do papai”, cultos e alfabetizados, de Natal, resolveram se divertir, quebrando garrafas a tiros, na beira das praias urbanas, enchendo a praia de cacos de vidro. A toda hora ocorriam acidentes com os banhistas, e tornaram-se impraticáveis as caminhadas na areia, com os pés descalços.
Num momento de inspiração, Luiz lembrou-se da técnica jesuítica, que ensina com o exemplo. E foi à luta. A partir de então, todos os dias via-se um homem, com uma camisa vermelha e uma lata a tiracolo, onde estava escrito “GARI VOLUNTÁRIO”, percorrendo as praias do Morcego, dos Artistas, de Iemanjá, e Praia do Forte. Colhia cacos de vidro, sem se importar com o que os outros pensassem dele.
Luiz passou o primeiro mês, fazendo as suas colheitas de cacos de vidro, nos três quilômetros da Praia do Meio, dialogando sempre com os curiosos que o seguiam, as mulheres que o interrogavam e os céticos que o provocavam.
Os velhos pescadores lhe perguntavam por que o doutor estava pescando caco de vidro: “Pra botar em cima do muro?”, “Pra vender?”
Ele sentia que a curiosidade aumentava com o espetáculo diário e com o seu silêncio, que era outra palavra de ordem, de um grande líder francês, o General Charles De Gaule.
Luiz sabia que o que estava fazendo incomodava. Nos altos círculos intelectuais da cidade, pelo telefone da Academia de Letras, um confrade o inquiriu sobre o disparate de um Embaixador, mesmo aposentado, estar colhendo cacos de vidro nas praias da cidade. E não faltava quem lhe dissesse que “uma andorinha só não faz verão.”
Nas suas costas, os “amigos” o ridicularizavam, dizendo que ele voltara do exterior, sueco, e que queria limpar as praias.
Passadas duas semanas, pararam em sua casa enormes caminhões da Globo, com equipamento mirabolante. Vinham se certificar se aquilo era verdade.
Duas semanas depois, o programa “Fantástico” abriu às 20:00, com a manchete: “Um embaixador aposentado limpa as praias de Natal, colhendo cacos de vidro”.
Seguiram-se as imagens que haviam feito.
Luiz resolveu sua revolta diante da inércia do poder público municipal de Natal, mudando-se para Brasília, em 1991.
Em 1993, voltou a Natal. Muita coisa tinha mudado. As barracas imundas, que poluíam as areias e o mar, tinham desaparecido, devido à intervenção da Marinha, solicitada por ele próprio ao Almirante Didier. Permaneceram as barracas horríveis da Prefeitura, sem latrinas para os bêbados e os farristas.
Andando pela praia, um velho pescador aproximou-se de Luiz e perguntou: “Cadê os cacos de vidro, Embaixador? Acabaram, como o senhor queria?”
– Exatamente. – respondeu Luiz.
Em 1999, Luiz foi dar um mergulho, na baía que cerca todo o paredão do rochedo negro do Morcego, onde se situam grandes restaurantes, que antes ali jogavam os esgotos. Notou a água azul, impecável. Indagou, então, aos moleques que o acompanhavam:
“Água limpa, hein? O esgoto não cai mais para este lado?”
O garoto respondeu: -Doutor, agora não há mais “cocô” por aqui.