O FEMININO DO PEIXE-BOI –

Assim como as pessoas, todo idioma tem lá as suas idiossincrasias. Vejamos o inglês. O artigo “the” é invariável, não existe “thes”; se usa “are” para sujeito no singular (England are winning the match) e “is” para sujeito no plural (the news is bad; politics is the art of possible). Para expressar certas palavras que existem no português, o inglês tem que associar termos, assim não existe avô e avó, é grandfather e grandmother; não tem cunhado, é brother-in-Law; não há neto é grandson ou grandchild; e por aí vai… Já o francês, para dizer oitenta, diz “quatro vinte” (quatre-vingt); noventa é “quatro vinte dez” (quatre-vingt-dix) e noventa e nove é quatro vinte dez nove (quatre-vingt-dix-neuf). O cara tem que multiplicar e somar para falar um número. Em italiano Emanuele, Andrea e Dominique são nomes de homem. Conheço um Romitti, um Stampini e um Strauss-kahn, respectivamente.

Se numa conversa você falar “eu vi ele” aparece logo alguém corrigindo para “eu o vi”. Só que essa última forma é ambígua. Se eu a pronuncio para um interlocutor fica a dúvida: eu vi a pessoa com quem estou falando, vi um terceiro ou eu ouvi? Já se eu disser “eu lhe vi”, fica claro que vi a pessoa com quem converso. Mas, do ponto de vista gramatical está errado. Aldo Bizzocchi no artigo “O raciocínio do dedo em riste”, na revista “Língua Portuguesa”, defende na língua falada o “eu lhe vi” e o “eu vi ele”.

As línguas têm a sua lógica própria. Os gramáticos logicistas vivem, aristotelicamente, de dedo em riste, corrigindo a língua falada. Pergunta Bizzocchi: E qual a lógica de a locução “por causa de” ser sinônima de “em consequência de”, se “causa” e “consequência” são antônimos? E continua: se é errado chamar o “punho” de “pulso” (embora seja nessa parte do corpo que os médicos tomam o pulso do paciente), então o “relógio de pulso” deveria ser rebatizado para “relógio de punho”.

Millôr Fernandes inventou de ser contra a crase, argumentando: se todo mundo erra na crase, esta é que está errada. Arrebanhou uma turba de seguidores incautos. Se eu digo que “estudo a noite” todo mundo vai entender que o meu objeto de estudo é a noite, ou seja, o oposto do dia. Mas, se coloco a crase, eu estudo qualquer assunto “à noite”. O problema é não humilhar nem ser humilhado pela crase. Antes de palavra masculina, jamais! Entretanto, como é a fusão de duas letras “a” poderá ter em frases como “ofereceu um presente àquele amigo” e “não faça mais referência àquilo”. No hino nacional o sujeito de “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas” não é indeterminado como sugere o “ouviram”, mas “as margens plácidas” justamente pelo fato de o “a” não ser craseado (só há o artigo no plural, falta a preposição).

Será que o articulista surtou? O título da crônica não é “O feminino de peixe-boi”? O problema é que a língua portuguesa nos faz algumas surpresas. Fiquei estarrecido ao saber que essa pergunta teria caído num concurso para oficial de justiça. Muitos responderam peixe-vaca. Por incrível que pareça (e para justa indignação das fêmeas humanas) o feminino de “o peixe-boi” é uma palavra masculina: “o peixe-mulher”. Não é brincadeira não, amigos, o feminino de peixe-boi é peixe-mulher. Uni-vos mulheres! E derrubem esse termo. Afinal, o feminino de touro, ou de boi…

 

Armando Negreiros – Médico e Escritor
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