O FOGO ESCARLATE DO RELIGIOSO –
Li nos impressos e na WEB que um pastor americano, para lembrar o 11 de setembro, andava prometendo queimar exemplares do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. Mistura de fanatismo religioso e vontade de aparecer, a promessa despertou a atenção daqueles dotados de um mínimo de bom senso. Desde a bela Angelina Jolie ao sisudo Bento XVI (a Santa Sé considerou o plano “indigno e grave”), inúmeros foram os protestos contra a piromania do pastor, de não mais de cinquenta ovelhas, de obscura congregação no estado americano da Flórida.
Se publicidade era o que pretendia o “Nero cristão”, isso ele, infelizmente, já obteve (sim, após “aparecer”, ele, por hora, desistiu do intento). E se minha vontade agora é deixar de lado esse tipo de desatino, o fato é que o “fogo” do pastor pode haver ensejado um novo recrudescimento da intolerância religiosa, que merece ser cuidado e amornado (os EUA e a Interpol chegaram até a emitir alerta sobre o risco de atentados terroristas em contrapartida ao protesto).
Não bastasse a clara provocação ao Islã que o ato ensejaria, a verdade é que livros, sagrados ou não, são para serem lidos, consultados, tocados e até cheirados (há quem goste do cheiro dos livros, especialmente os novos, sabiam?). Ou, mais poeticamente, como orava Castro Alves (1847-1871), semeados. “Oh! Bendito quem semeia livros, livros à mão cheia e manda o povo pensar! O livro caindo n’alma, é germe que faz palma, é chuva que faz o mar!”, pregava o nosso poeta.
E se é para semear livros e pregar contra a intolerância (religiosa, racial, sexual etc.), sobretudo a que vem de uns EUA interioranos e puritanos, que tal lembrar “The Scarlet Letter” (1850), de Nathaniel Hawthorne (1804-1864)?
Certamente um dos grandes romances da literatura norte-americana de todos os tempos e extremamente interessante para os amantes do Direito, “The Scarlet Letter” é, como bem explica nota da edição de Bolso da obra da Wordsworth Classics (1999), uma dolorida narrativa de crime, pecado, culpa, punição e redenção, ambientada em uma Nova Inglaterra do século XVII, puritana e casta. Uma jovem mãe de um filho ilegítimo confronta seus intolerantes juízes/clérigos. Condenada a viver com a letra “A” estampada em seu peito, sinal do seu adultério, as histórias de Hester Prynne, do seu marido “traído” e do seu amante são retratos de vidas destruídas pelas culpas e pela dor que foram, em razão da rígida moral da época, “obrigados” a carregar. Culpa e dor que culminam na revelação da verdade e no trágico clímax da obra.
Pondo de lado inúmeros aspectos do livro, como o seu inovativo caráter de romance psicológico e a curiosidade de ser Hawthorne descendente de um dos juízes das bruxas de Salém, o que me deixa hoje mais encafifado, recordando a intenção piromaníaca do pastor, é como, passados mais de três séculos da saga de Hester Prynne, os EUA se mantêm, sob muitos aspectos, tão puritanos e intolerantes como eram àquela época. Tão grandes e tão pequenos, eu diria. E, de resto, não só os EUA. Como poetava Drummond (1902-1987), o mundo mesmo é grande e pequeno.
E de recordação em recordação, a leitura de “The Scarlet Letter” e a piromania do pastor nos remetem a outras imagens e erros do passado. Aonde a intolerância e o fanatismo não nos são capazes de levar? “Onde se queimam livros, no final também se queimam pessoas”, um dia gritou Heinrich Heine (1797-1856), como que adivinhando o que se daria em sua Alemanha, com o Nazismo, cerca de um século após a sua morte. Mas será que o ser humano vem aprendendo com seus erros (ou com sua literatura)? Parece que não. Não obstante a luta contra a intolerância religiosa e o terrorismo, quase que cometemos um novo erro por esses dias. Nesse ponto, parafraseando Agripino Grieco (1888-1973), até mesmo nos erros, em tudo de muito novo, há sempre algo de muito velho.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
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