“O IMPORTANTE É TER META” –
Para mim, nunca foi entediante esperar em consultório médico. Carrego um livro comigo e, enquanto passam os minutos (às vezes, as horas), leio diletantemente. Aliás, devo confessar que, nessas ocasiões, lendo e esperando a minha vez, me sinto muitíssimo bem. É como se eu tivesse uma forte justificativa para deixar meus afazeres diários e fazer algo que me dá grande prazer. Certo ou não, inconscientemente, uma voz interior me diz: “a sua saúde é mais importante do que qualquer coisa (inclusive, seu estressante trabalho, claro) e você está fazendo o que deve ser feito”.
Mas, daquela vez, era diferente. A leitura não estava sendo prazerosa como deveria ser. E tinha comigo um romance maravilhoso, Wolf Hall (Fourth Estate, London, 2009), escrito por Hillary Mantel, obra pela qual a autora acabou de ganhar o Booker Prize, o mais importante prêmio literário para uma obra de ficção, escrita em inglês, no âmbito dos países da Commonwealth e da Irlanda, se não estou enganado. Uma coisa me encasquetava. Estava preocupado com a redação da minha crônica dominical. Já se aproximava o fim de semana e “nada intentado”, como diria Fernando Pessoa.
Não tinha um plano para a crônica. Não tinha sequer uma idéia, que dirá uma meta. E não sei o porquê, martelavam em minha cabeça as palavras do pai de um grande amigo de infância. Uma mistura de filósofo de botequim com chato de galocha que, para tudo, recomendava: “o importante é ter meta”. Para os estudos, “o importante é ter meta”; nas nossas peladas, gritava “o importante…”. Não sei até onde seu filho chegou. A vida, como geralmente ocorre, nos separou. Cada vez mais estou certo de que não é a morte que separa, mas sim a vida. “Nada de divagações, Marcelo, o importante é ter meta”, disse a mim mesmo.  
É verdade que eu poderia escrever algo sobre o livro que estava lendo, uma biografia romanceada da vida de Thomas Cromwell (1485-1540), 1º Duque de Essex e principal ministro do Rei inglês Henrique VIII (1491-1547). Sim, Henrique VIII, aquele mesmo, que criou a Igreja Anglicana, casou seis vezes e mandou decapitar muita gente, inclusive algumas de suas esposas e o próprio Thomas Cromwell. O livro tem interessantes passagens relacionadas com o direito. O biografado, que tinha excelente formação jurídica, foi, provavelmente, o grande arquiteto da legislação reformista da época. Por exemplo, está registrada sua participação direta na elaboração da legislação que impediu o apelo ao papa das decisões tomadas no âmbito da Igreja inglesa, que reconheceu a supremacia do rei sobre a Igreja Anglicana e da legislação que reuniu Inglaterra e País de Gales. Aliás, até onde eu já li da obra, pelo menos dois importantes julgamentos são descritos. Primeiro, a tentativa de Henrique VIII de obter decisão, perante legatários do Papa, no sentido da inexistência do seu casamento com Catarina de Aragão (1485-1536), ficando assim livre para casar com Ana Bolena (1501-1536). Tentativa malograda, como sabemos, que redundou, entre outras coisas, na queda do poderoso Cardeal Wosley (1471-1530). Tendo falhado na tentativa de obter a liberdade conjugal do rei, o grande Cardeal, personagem fundamental da primeira parte do livro, é acusado de alta traição, sendo esse processo também tratado na obra.
Mas Wolf Hall, é uma obra de ficção que, certamente, romanceia muitos dos fatos abordados. Naquele momento, não dispondo de recursos – internet, enciclopédias etc. – para confirmar o que era descrito no livro, continuava encasquetado.
O tempo passava (lentamente, claro) e eu não era chamado. Procurei me distrair olhando para os meus companheiros de espera. Talvez houvesse alguém conhecido, e eu pudesse trocar umas ideias. Foi aí que o inusitado ocorreu. Meu olhar cruzou com uma senhorita (logo observei, não tinha aliança; portanto, não devia ser casada), que, pelo que notei, já vinha me observando fazia certo tempo.
Afirmo categoricamente que, fazia tempo, não via criatura tão bela. A idade, não sei precisar, mas era jovem, mais jovem do que eu, certamente. Tinha a pele extremamente branca. O cabelo escuro. Os olhos verdes, de um verde que me era conhecido. Talvez por isso foi que pensei: “conheço-a de algum lugar”? Mas, de onde? Amiga de alguma amiga, dantes aluna, promotora, advogada, quedei-me especulando as mais variadas hipóteses. E quedei-me mesmo, na precisão integral do termo, como o diria o autor de “Os Sertões”, porque, intimidado por tanta beleza, não tive a iniciativa de abordar a beldade.
Mas foi aí que o inusitado se confirmou. Não é que ela, notando o meu interesse,  levantou-se e veio ao meu encontro. Sentou-se ao meu lado e puxou conversa. E como estava bem vestida e cheirosa! O seu nome, prefiro não revelar. O teor da conversa, idem. Mas não é que ela tinha ouvido falar de Hillary Mantel, Wolf Hall e conhecia alguns dos ganhadores do Booker Prize? Nossa “entrevista” durou, sei lá, uma hora. Sinceramente, não vi mais o tempo passar.
Enfim, fui chamado. Contrariado, me levantei para a consulta. Mas minha nova amiga, espontaneamente, me deu o número do seu celular e disse: “ligue para mim. A gente pode fazer alguma coisa outro dia depois do trabalho, jantar ou tomar um chope”.
Da consulta, claro, nada lembro.
E se você, leitor, me perguntar hoje, passados alguns dias, se eu liguei para ela, respondo: não.  Essa princesa, eu inventei. Afinal, “o importante é ter meta”, e eu precisava de uma estória para atingir a minha, que era, entretendo você, terminar esta crônica.

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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