O INVENTOR –
Existem alguns candidatos a pioneiros daquilo que hoje chamamos de ficção policial/detetivesca. O inglês William Wilkie Collins (1824-1889), autor de “The Woman in White” (1860) e de “The Moonstone” (1868), sobre quem já escrevi aqui, é um deles. O estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849), um dos maiores contistas da literatura universal, sobre quem também já tratei aqui (e, neste caso, várias vezes), é outro forte concorrente.
Há, entretanto, um candidato menos conhecido, mas que talvez mereça, de fato, o título convencional de pai da criança: Émile Gaboriau (1832-1873).
Para quem não sabe, Émile Gaboriau nasceu na pequena comuna de Saujon, no sudoeste da França, em 1832. Criança, na companhia dos pais, viveu em diversas localidades da França. Jovem adulto, pouco interessado nos estudos formais, exerceu várias profissões. Foi escriturário, militar e deu aulas de latim. Já mais velho, retomou os estudos, em medicina e em direito. Foi ser secretário de várias personalidades, em especial, para sua carreira, do prolífico romancista Paul Féval (1816-1887). Assim Gaboriau descobriu o jornalismo. De jornalista a escritor de ficção, sobretudo de romances, publicados em formato de folhetim, foi um passo. “L’Affaire Lerouge”, de 1866, talvez seja o seu mais afamado romance. Muito badalados também são “Le Crime d’Orcival”, de 1867, e “Monsieur Lecoq”, de 1869. Gaboriau, aliás, é o criador do Monsieur Lecoq, um detetive ficcional que trabalhava na antiga Sûreté (hoje Police Nationale) francesa. Gaboriau e o seu detetive, isso é importante registrar, tiveram grande influência sobre Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) e, por consequência, na construção do mais famoso dos detetives da ficção, o impagável Sherlock Holmes. O criador do Monsieur Lecoq faleceu em Paris, em 1873, de problemas pulmonares.
Mais do que ser um dos pioneiros da ficção policial/detetivesca, Émile Gaboriau talvez tenha sido um dos pioneiros – ou mesmo, o inventor – de um gênero ou subgênero de literatura ainda mais específico, o dos “romances judiciários”, que, publicados nos folhetins dos jornais da sua época, causaram sensação. Nessas estórias, a personagem do criminoso é geralmente eclipsada, dando-se protagonismo ao investigador arguto e genial ou mesmo a uma complicada instrução judiciária na qual, em meio a uma equivocada acusação a um inocente, se procura descobrir o verdadeiro culpado. O grande público adorou. Virou até moda. Ganhou variações com o tempo. E, embora transformado e reinventado, chegou até nós.
Pelo menos é assim que pensa ninguém menos que o grande jurista, político e literato italiano Enrico Ferri (1856-1929), sobre quem também já escrevi aqui. Li isso não em sua famosa “Sociologia Criminale”, obra que, publicada com esse nome em 1892, fez de Ferri um dos luminares da Escola Positiva do Direito Penal. Mas, sim, no gostosíssimo “Os criminosos na arte e na literatura” (que possuo numa edição brasileira, de Ricardo Lenz Editor, de 2001), na qual o professor italiano afirma: “Émile Gaboriau foi o inventor de um certo gênero de romances judiciários, muito imitados depois, e muito em moda há alguns anos. (…). Nesta espécie de obras, o criminoso é quase sempre relegado ao segundo plano: ele figura como um acessório, um manequim necessário à representação de um crime misterioso, porque o verdadeiro protagonista é a polícia, o agente arguto, genial e sutilmente lógico, possuindo um faro especial para descobrir o criminoso, entre indícios vagos e insignificantes na aparência. Uma laboriosa instrução judiciária excita a atenção do leitor e mantém-no suspenso entre duas emoções diferentes: de uma parte, a fina clarividência de um agente decidido a procurar um culpado; doutra parte, a perseguição dolorosa de um inocente atirado, pela falsa manobra de um silogismo inicial, à inexorável engrenagem de um processo criminal. O esboço é quase sempre o mesmo: a polícia descobre um crime e um dos agentes, mais avisado que os outros, em vez de julgar segundo a aparência e a verosimilhança, chega, por indução, a encontrar uma pista segura. Então, graças aos indícios reveladores que escapam à crítica superficial de seus colegas, ele chega, através dos tortuosos meandros da verdade, a colocar as mãos sobre o culpado”.
E é o mesmo Ferri que nos explica a relação entre a ficção e a realidade judiciária: “Os dramas judiciários apresentam-nos um gênero análogo ao destes romances: têm também por assunto a descoberta de um delinquente, quase sempre um assassino, e excitam a emoção, mostrando-nos um erro judiciário mais ou menos definitivo e o embaraço dos indícios criminais nos episódios de uma vida normal”.
De minha parte, não tenho como afirmar, com 100% de segurança, quem foi mesmo o inventor dos tais romances judiciários. Mas, como já disse aqui certa vez, adoro essas estórias. Acho-as intrigantes e viciantes. E agradeço penhoradamente a Émile Gaboriau. Entretanto, muito mais gratos devem ser gente como Scott Turow (1949-) e John Grisham (1955-). Foi certamente subindo nos ombros do gigante francês, do século XIX, que esses americanos de hoje puderam enxergar e imaginar tão longe.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
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