“O NOSSO MUNDO NÃO EXISTE” –
Ela jurou não dar importância, jurou ter pelejado desviar o pensamento. Mergulhou em outras atividades, outros afazeres… Não teve jeito, toda vez que a mente tinha uma folguinha, lá estava ela, lembrando da frase “O nosso mundo não existe”.
Ela desabou ao ler aquela frase, tomou um baque; foi impactante lembrar o que aconteceu e assimilar que não há história, que não eles “existiam”, como assim? E se assim fosse, existir consistiria em negar, anular, dissimular os seus “eus verdadeiros”. Seria o mesmo que renegar sua essência.
Ela parecia ver a testa daquele homem franzindo-se em discórdia com suas conjecturas. Fez questão de lembrar-lhe que só conseguiria digerir determinados assuntos depois de bater todos os prós e contras no processador de seus pensamentos. Facilitaria a digestão do seu pensar.
Ela não sabia se ele ainda lembrava, quando, outro dia, lhe disse que tinha muita raiva de sentir a falta, e mesmo a necessidade do outro. Falou ainda que a maior indignação que ela sentia era olhar o outro e friamente analisar o tamanho da sua tolice, o tamanho da ilusão que se criara em torno do outro, atribuindo a ele o suprimento das suas vontades e desejos. Esse outro que ela nem conhecia; esse outro que, de tão distante, nem fazia parte do seu cotidiano; esse outro que nem ao menos “existe”.
Se, de fato, ela usasse o outro para o seu gozo e deleite, assim como se deixasse ser usada para seu deleite e gozo. Seria bem verdade dizer que esse outro (substancialmente inexistente, se relacionado a sua vida real) que despertou interesse, admiração, tesão, intenções safadescas; que esse outro, mesmo superficialmente, reúne atributos que atiçam a sua libido.
Se assim fosse, ela assumiria a convicção de que o outro passou a ser objeto de uso pessoal, objeto capaz de suprir as necessidades do EU que não existe. Objeto de primeira necessidade.
Nessa loucura de pensamento, tentou racionalizar frases, fatos e acontecimentos. Sem conseguir esquecer, lembrou-se: “O nosso mundo não existe”; “Nossos eus reais não existem”.
Não havia como negar que toda aquela ilusão/inexistência era danada de boa, além de complicada, pensou ela. Indagou para si mesma: se eu existo, mas o meu eu real é inexistente e absolutamente ignorado no meu convívio social, quem sou eu e o que são os sentimentos que penso sentir? Eu os sinto ou tudo não passa de mera ilusão?
Respondeu em pensamento: Sou uma grande farsa, disfarçada de boa garota.
Lembrou-se de uma frase escrita na parede de uma casa que fazia parte do caminho que percorria todos os dias, para ir ao trabalho, deixando-a intrigada por muitos anos de sua vida: “tudo é mentira”.
Se tudo é mentira, racionalizou, acho que não haverá problema em tirar uma casquinha, cair de boca no que alimenta tão bem meu corpo e minha alma e, se o “nosso mundo não existe”, sendo ele apenas fruto da minha imaginação, não há nada o que temer, pois até o sofrimento não existirá.
Decidiu, por fim, dar asas a sua criatividade inventiva, para se deliciar em estórias e causos, frutos de sua mente insana e devassa, que adora ter o outro com seu EU real, que não existe, para pensar, sonhar, desejar, aperrear e, com muita chameguice, traquinar no mundo das coisas inexistentes.
De todas as interrogações que lhe veio à mente, só uma certeza ela tinha: isso não era amor, de jeito nenhum. Tentou medir. Desistiu. Dizem que amor não se mede. Ela pensou rápido e dessas surpresas se absteria.
E se ela descobrisse, logo no mundo que não existe, o amor? Rezou o Pai Nosso e duas Ave Maria, pedindo para livrar-lhe de um aperreio desse tamanho. Lhe bastavam os perrengues já passados.
E enquanto as rezas não surtiam efeitos, lembrou do tamanho da gostosura de viver o mundo ilusório. Em voz alta disse:
– Mas que é bom é sim senhor, ou melhor, é bom pra mais de metro!
Flávia Arruda – Pedagoga e escritora, autora do livro As esquinas da minha existência, [email protected]