O PALHAÇO – 
Ruth se apaixonou pelo Circo Nerino, ainda criança. Todas as vezes em que esse fantástico Circo vinha ao Recife,  seus pais a levavam para assistr aos belos espetáculos de palco e picadeiro, com acrobatas, trapezistas, palhaços, além dos belos animais. O “Circo Nerino” nunca saiu da sua cabeça.
Mais de vinte anos depois, Ruth, já casada, sonhava em mostrar o Circo Nerino às suas duas filhas, mas ele nunca mais apareceu. Certa vez, no final de 1969, soube que havia chegado a Olinda um maravilhoso Circo, o Circo Garcia. Ela relutou em levar as filhas ao tal Circo, porque não acreditava que nenhum outro fosse melhor do que o Circo Nerino. Sendo da “torcida organizada” do Circo Nerino,  tal qual uma torcedora de um time de futebol, não simpatizava com nenhum outro Circo que tivesse a ousadia de querer superá-lo. Entretanto, tendo em vista que o tempo estava passando e o Circo Nerino não voltava ao Recife, Ruth entregou os pontos e num domingo à tarde, foi com as duas filhas  pequenas ao Circo Garcia.
Quando passava pela entrada, Ruth olhou para o porteiro, enquanto lhe entregava os ingressos e no mesmo instante o reconheceu:

-Seu Gaetan!

E o homem respondeu, emocionado, com sua voz rouca:

-A senhora me conhece?

-Conheço muito! Seu Gaetan, por que é que o senhor está aqui, recebendo ingressos?
Seu Gaetan nada respondeu.

Nesse momento, a mulher teve a certeza de que o Circo Nerino não mais existia.

-Seu Gaetan, cadê Bozan? Cadê Pinguim? Cadê Roger?- perguntou.

-Roger também está aqui no Circo Garcia…- respondeu o homem..

Por cortesia, o Sr. Gaetan levou a mulher e as filhas para as cadeiras, mesmo com ingressos para os poleiros.

Como apreciadora de Circos, Ruth, na verdade, preferia ficar mesmo nos poleiros, de onde se tem uma visão melhor do Picadeiro.

Para não ser grosseira com o Sr Gaetan, atual porteiro do Circo Garcia, Ruth acomodou-se com as filhas nas cadeiras. No intervalo, ele veio vender pipocas, pirulitos e balas.

-Seu Gaetan, cadê Roger?- perguntou

-Você acabou de ver.- respondeu o porteiro.

-Vi, não!

-Viu, sim!

Quando o espetáculo acabou, Seu Gaetano chamou Ruth e as filhas e as levou aos camarins. Foi então que a mulher, emocionada, viu Roger, o mais bonito galã do Circo Nerino, com uma toalha na mão, tirando a maquilagem de palhaço. A mulher disfarçou os olhos rasos d’água.

Descobriu que Roger, filho do dono, e o mais belo artista do Circo Nerino, que sabia se equilibrar tão bem nas ancas de um cavalo, era agora um simples palhaço no Circo Garcia. Havia também os amigos que sabiam que as famílias Avanzi e Garcia se misturaram com o casamento de Roger e Anita.

Na realidade, há muito tempo Roger se tornara o Palhaço Picolino, substiuindo o pai, o saudoso Nerino Avanzi. Sua mãe, Armandine Avanzi e seu tio Gaetan Ribolá estavam com ele, há meses, no Circo Garcia.
Entretanto, a permanência do Circo Garcia no Recife passou despercebida pela imprensa, até que no dia 10 de março, o Diário de Pernambuco noticiou: “GAETAN, do Circo Nerino, que se encontrava no Circo Garcia, lutando para manter de pé a tradição do Circo, está morto.”Sofrera um enfarte fulminante.
Gaetan Ribolá, irmão de Nerino Avanzini, o dono do Circo Nerino, foi velado no Recife por um pequeno grupo de amigos da cidade e o então reduzido elenco do Circo Garcia, na Capela do Hospital Santa Maria, no Bairro Cordeiro.
Roger Avazani passou o dia providenciando os documentos para transportar o corpo do tio para João Pessoa (PB), onde a família tinha um jazigo. Chegou ao velório no final da tarde, e logo que anoiteceu precisou ir para o Circo, porque naquela noite teve espetáculo. E o espetáculo não pode parar. O espetáculo continua!
A sina do Palhaço é sorrir, mesmo quando sua alma chora. Essa triste realidade já rendeu a criação de várias obras.
Virou música, poesia, crônica, romance, filme, ópera e até clichê. “Ride, Pagliaci! Ride!”
Roger já era palhaço, há dezesseis anos. Já tinha experimentado fazer rir, com vontade de chorar. Mas naquela noite, no número de ciclismo cômico, ele abriu as comportas e deixou as lágrimas correrem soltas.
De madrugada, desmontou-se o velório. O caixão foi fechado e colocado na carroceria da caminhonete do Circo Garcia.

Roger, Armandine e uma amiga, Ceci Cordeiro, apertaram-se no banco, e a camionete partiu.  Atravessou a cidade do Recife e pegou a estrada para João Pessoa.

Muitas e muitas vezes, desde a década de 1940, Gaetan percorreu aquela estrada. Dirigiu os primeiros caminhões da frota que o Circo Nerino viria a adquirir, até o início de 1950. Comandava uma caravana de carros-moradia, provavelmente a primeira moradia do Brasil, que ele próprio ajudara a construir.

De manhãzinha, a caminhonete chegou a João Pessoa,  e logo depois estacionou na frente do Cemitério. Um grupo de pessoas aproximou-se. Eram os radioamadores que souberam da morte de Gaetan, por meio de uma colega do Recife, que se encarregara de divulgar a notícia e que se chamava Nerina. Por sinal, essa moça, radioamadora, era muito amiga de ERNANI HUGO, ex -titular da Delegacia de Ordem Política e Social do Estado, muito querido em Natal,

Eles estranharam a solidão daquela caminhonete. Esperavam uma grande carreata. O sol já ia alto e os Radioamadores precisavam trabalhar.  Não puderam ficar até o fim do ato. E assim, Gaetan Ribola, que sustentava uma pirâmide de cinco homens, a viga mestra do Circo Nerino, foi enterrado sem nenhuma pompa. Não teve salva de tiros, ramalhetes de flores, medalhões de ouro, discursos de “autoridades civis, militares e eclesiásticas”, nem aplausos daquele para quem ele dedicou sua vida: O RESPEITÁVEL PÚBLICO.

“Aplauso não se pede. O povo aplaude quando quer”.

Violante Pimentel – Escritora
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