O PAPAGAIO DE DONA ERCÍLIA –
Há alguns anos degustei as quinhentas e cinquenta páginas do livro de Francisco Fausto Paula de Medeiros (falecido em 2016) e fiquei triste quando acabou. Não tolero comparações, mas, talvez por conhecer muitos personagens, achei melhor do que Pedro Nava. Um belo volume impresso pela Editora Lidador, capa de Cláudio Alvarenga, com direito a orelhas de Nei Leandro de Castro: esse livro soma líricas evocações da infância à firme determinação do autor de realizar os mais ousados sonhos; une sabor local, paisagens íntimas como uma praça (Lorca), à erudição sustentada por uma memória fotográfica. Tudo valorizado pela linguagem clara, mesmo quando a erudição se impõe, o que transforma Viva Getúlio em prazer, muito prazer de leitura.
O sub-título – as areias brancas de memória – foi feliz idéia do poeta Diógenes da Cunha Lima, que escreveu inspirado prefácio: Fausto pensa e escreve bonito. Ele fez o que recomendou Shakespeare: “Louvar o que está perdido, torna querida a lembrança”. São as suas lembranças buscadas e queridas. … Marcel Proust, que elevou suas lembranças à categoria de obra-prima da literatura, dizia que a nossa memória é uma espécie de farmácia, de laboratório de química, onde se pode por a mão, ao acaso, tanto num calmante, quanto num veneno perigoso. Francisco Fausto, leitor atentíssimo de Proust, resolveu abrir as portas de sua memória e, ao longo de mais de quinhentas páginas, nos conduz, por tranquilas e líricas recordações, bem como pelo travo das elegias, pelo pranto dos seus mortos queridos. … Erudição, ensinamentos, registros que ora contêm calmante, ora veneno, vão marcar o leitor profundamente. … Este livro é uma obra-prima de exaltação e elegia ao cotidiano.
Dorian Jorge Freire (sou pequeno e dizem gente assim é atrevida) apresenta o seu cunhado Faustinho (conheci-o magricela) no nem posfácio, nem prefácio: “Oh! O mau cheiro insuportável da memória”. Drummond. Conheço pedaços desse pretérito cheiroso primeiro como maresia, depois como bogari. … Aprendeu com Djalma que o direito não está errado quando consulta à boa razão e descende do Direito natural cristão. … Dizem que ninguém muda. Muda, sim. Nosso irmão Rafael Negreiros sustentava, desabusadamente, que só estátua não muda. Tem razão. Até os santos mudam. Estão em processo de conversão contínua. … O memorialista que lembra Pedro Nava amava Carlos Lacerda e desprezava Getúlio Vargas; hoje reconhece no presidente, o estadista que fez lei a proteção do trabalhador ainda ameaçado. Tem no seu gabinete de ministro-presidente um retrato de Leão XIII, autor da Rerum Novarum, privilegiando a Justiça natural. A multidão que estava ali, sugeria pranto. Os pais, mulher, filhos, irmãos, avós, tios, colegas, o mestre Djalma Marinho, dona Ercília e o papagaio getulista.
Finalmente, antes de entrar no primeiro capítulo, o próprio autor se apresenta: sempre tive uma visão simultânea do tempo. O meu tempo de infância nos sítios de Areia Branca e Natal. Depois a minha juventude em Mossoró e, de novo, em Natal. Mais tarde a vida adulta em Natal, Recife e Brasília. … Tenho que este texto é um arquivo empoeirado, no qual lanço papéis velhos que falam de mim mesmo e dos outros ou de mim pelos outros e dos outros por mim: tudo o que passei com resignação ou com orgulho, que o orgulho dos resignados é como água nas dunas. Mas, por favor, o centro de tudo não é a minha vida. Não. O centro de tudo, de nomes e lembranças, é o cotidiano. Sim, o cotidiano do Diário Póstumo: “no confim ideal entre a realidade e a fantasia”. … Se não for rigorosamente fiel aos fatos, muitas vezes superpostos a uma intuição bergsoniana, na qual desprezo a contextualização, conscientemente serei claro nas intenções e, só por isso, mereço a indulgência dos meus contemporâneos. Escrevo – eis a verdade – a crônica corrente de uma época e a sua inevitável versão caleidoscópica nas conversas do cotidiano. É assim que pretendo, na elegia e no apólogo, superar equívocos da memória no plano intelectual ou ético, quando me coloco entre a razão e uma profunda vivência emocional. … Este livro, pois, não é a minha vida; não pretendo escrever autobiografia nem memórias; ele é a minha alma: expressa a minha verdade vista do cotidiano e é quanto basta para ser equívoco, às vezes desconexo e, quase sempre, excessivamente piedoso, como se na minha idade ainda não houvesse encontrado a diferença entre o real e o imaginário…