“O SÉCULO DOS INTELECTUAIS” E O CASO DREYFUS – Marcelo Alves Dias de Souza

“O SÉCULO DOS INTELECTUAIS” E O CASO DREYFUS –

Estes dias, revirando minha biblioteca, deparei com um livro muito querido para mim: “O Século dos Intelectuais”, de Michael Winock (Bertrand Brasil, 2000). É certo que, muitas vezes, costumamos dizer que esse ou aquele livro nos foi marcante, mas isso, geralmente, tem um sentido pura ou predominantemente intelectual. O fato é que “O Século dos Intelectuais” me foi marcante também em um sentido bem material. Encantado com as maravilhas da intelligentia francesa ali descritas, prometi a mim mesmo, um dia, estudar/ morar em Paris por alguns meses. Alguns anos após, juntando férias acumuladas, parti para Paris em busca de sentir in loco, como amante curioso, todo aquele ambiente traçado no inspirador livro.
Para os amantes da boa leitura, não tenho dúvida de que “O Século dos Intelectuais” é uma obra de qualidade ímpar, tanto que seu autor, professor de história contemporânea no Instituto de Estudos Políticos de Paris, por ela, ganhou, no ano de 1997, o Prêmio Médicis de Ensaio. Estilisticamente, o texto é fluido, extremamente informativo e documentado. Mas o livro é particularmente interessante aos amantes da política e das letras francesas, sobretudo daquilo que foi produzido e debatido em fins do Século XIX e durante todo o século XX. Assim, quanto ao conteúdo, respeitadas as preferências pessoais de cada um, nos leva a pensar sobre inúmeras questões: valores universais, como verdade, justiça e liberdade; a relação entre o poder e os meios de comunicação, os de ontem e os de hoje; o papel que deve ter o homem letrado, seja um “intelectual” ou não, na consolidação da democracia e na condução dos negócios de Estado, no mundo de hoje, inclusive. Todavia, para o autor, a política e os movimentos culturais não podem ser apartados da vida, pública e privada, dos seus protagonistas. Essa é a premissa da qual ele parte para traçar um amplo perfil atento às lutas, em campos opostos ou na mesma “trincheira”, às amizades e aos ódios que (des)unem os chamados intelectuais, no sentido que a expressão adquiriu, em fins do século XIX, por ocasião do famoso caso Dreyfus. E é interessante a tentativa que faz o autor de apenas narrar, sem tomar partido (se é que isso é possível), os acontecimentos da vida intelectual francesa do século XX.
O livro é divido em três grandes períodos: os “anos Barrès”, que vão do caso Dreyfus até a Primeira Guerra Mundial; os “anos Gide”, entre as duas guerras, e os “anos Sartre”, a partir da libertação da França. A critério do autor, esses nomes, “admirados, detestados, imitados”, pareceram simbolizar essas três épocas com “uma influência que se estendeu por várias gerações”. Tudo sugere um percurso do tipo nascimento (pois o caso Dreyfus, com o famoso o “J’accuse” de Émile Zola e a divisão da pátria, é o início, segundo o autor, da era de grande influência dos intelectuais), vida e morte, mesmo que não se faça do falecimento de Sartre, pelo menos expressamente, um fim da “história” dos intelectuais.
É curioso – sobretudo para os interessados no Direito – como o caso Dreyfus permeia o contexto do livro e, consequentemente, a vida intelectual francesa por muitos anos. O affaire Dreyfus foi um rumoroso processo judicial que dividiu a França por vários anos, na passagem do Século XIX para o Século XX. O caso estava fundado em uma carta encontrada no cesto do lixo do adido militar alemão na França, denotando a existência de um suposto traidor entre os oficiais franceses, que estaria a realizar espionagem em prol dos alemães. Alfred Dreyfus, oficial judeu, foi considerado o principal suspeito. Levado a julgamento, em 1894 ele foi condenado, por alta traição, à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Mas Dreyfus foi vítima de um processo fraudulentamente conduzido. Ele era, em verdade, inocente, pois a condenação baseava-se em documentos falsos.
Mesmo tomando ciência do erro judicial, os militares franceses tentaram encobertá-lo. Era a mais terrível campanha nacionalista, xenófoba e antissemita que tomou conta da França da época. Em 1898, apesar das evidências, Dreyfus foi condenado em um segundo julgamento. A manutenção da decisão condenatória provocou a indignação de figuras, como Theodor Herzl (fundador do movimento sionista) e de Émile Zola, autor de “Germinal”. O grande escritor mostrou o absurdo ao povo francês ao publicar, nesse mesmo ano, no jornal L’Aurore, a famosa e comovente carta aberta ao Presidente da República Félix Faure, denominada J’accuse! (em bom português, Eu acuso!). 
A França restou dividida entre os dreyfusards e os anti-dreyfusards. Muitos intelectuais tomaram partido. Alguns, ao final vencidos, bradavam a defesa do Exército, do Nacionalismo e morte aos judeus. Outros, ao final vencedores, gritavam: “Vive Dreyfus” e “Vive Zola”.  O caso só foi revisto oito anos depois, em 1906, após a morte de Zola (1902), e mostrou-se que Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy, também militar do Exército francês, era o verdadeiro autor das falsas cartas e atuava como espião dos alemães. Dreyfus foi, pelo menos parcialmente, restabelecido no exército, mas não tinha mais possibilidade de uma carreira de sucesso e foi levado a demissão em 1907. Dreyfus, que nunca pediu nenhuma compensação ao Estado francês pela injustiça de que foi vítima, morreu em 1935.
Em Paris, levado pelo meu querido livro, quis prestar minha homenagem ao intelectual engajado que foi Zola e procurei visitar seu túmulo, hoje no Panteão dos franceses no Quartier Latin. Aliás, na cerimônia de traslado das cinzas de Zola do Cemitério de Montmartre para o Panteão, em 1908 (governo de Clemenceau), sob violentas manifestações nacionalistas, Dreyfus ainda é atingido por dois tiros de revolver, restando levemente ferido.
Já de volta ao Brasil e ao exercício de minhas funções no Ministério Público Federal (muitas vezes de acusador), não esqueci Zola e vi que, a despeito do excelente papel que vem exercendo o Ministério Público brasileiro, a atuação de seus membros está, de certa forma, limitada pelas formalidades a que devem obediência.
Para as injustiças praticadas pelo próprio Estado brasileiro, muitas vezes corrupto, pensei: como faz falta um Zola, alguém que, livre das amarras do formalismo, possa gritar “Eu acuso!” e fazer Justiça por literatura. “Vive Zola”!

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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