O VENTO SERÁ A TUA HERANÇA –
Hoje analisaremos “juridicamente” o filme “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”), de 1960, direção de Stanley Kramer (1913-2001), anotando/discutindo uma meia dúzia aspectos da sua narrativa que estão vinculados, direta ou indiretamente, ao direito.
Comecemos anotando, na esteira do que também fazem Steve Greenfield, Guy Osborn e Peter Robson (em “Film and the Law: the Cinema of Justice”, Hart Publishing, 2010), que “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”) é memorável pelas suas várias cenas de tribunal, talvez em particular a inquirição (em “cross-examination”) do próprio promotor Matthew Harrison Brady (brilhantemente interpretado por Fredric March), “que é chamado como testemunha, para explicar o significado da Bíblia”.
Ademais, deve ser registrado que “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”) faz parte de uma longa tradição do cinema americano de fazer do advogado o herói dos seus filmes de tribunal. Talvez por isso, como registra Christian Guéry (em “Les avocats au cinéma”, Presses Universitarie de France – PUF, 2011), quase todos os grandes atores americanos tenham em algum momento interpretado o papel de um advogado herói, a exemplo de Henry Fonda em “Young Mister Lincoln”, Gregory Peck em “To Kill a Mockingbird”, James Stewart em “Anatomy of a Murder”, Kirk Douglas em “Paths of Glory” e por aí vai. “O vento será a tua herança” tem o seu “herói jurídico” precisamente no advogado de defesa Henry Drummond, interpretado por Spencer Tracy. Mas há também no filme a figura do “advogado vilão”, que é o promotor especialmente designado para o caso, o famoso Matthew Harrison Brady, muito embora, nesse caso, esse “vilão” nos provoque, pela sua sincera fé na causa, aqui e acolá, certa simpatia.
Na verdade, nos Estados Unidos da América, a coisa vai ainda mais longe. Conforme lembra o mesmo Christian Guéry, o cinema americano costuma celebrizar na grande tela as vidas profissionais ou as atuações esporádicas como advogados de alguns dos seus grandes homens públicos. São os casos, por exemplo, de Abraham Lincoln (1806-1865) em “Joung Mister Lincoln”, filme de 1939, com direção de John Ford (1894-1973), e, mais recentemente, de John Quincy Adams (1767-1848) em “Amistad”, de 1997, com direção de Steven Spielberg (1946-), ambos, como sabemos, ex-presidentes dos EUA. “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”) tem no seu advogado de defesa, Henry Drummond, uma representação (ficcional, claro) do grande Clarence Darrow (1857-1938, sobre quem já escrevi aqui), que é muito provavelmente o advogado real mais citado e representado – de forma elogiosa, invariavelmente – no cinema americano e, quicá, mundial. Isso sem falar que o personagem Matthew Harrison Brady é inspirado em William Jennings Bryan (1860-1925), também uma figura de peso na história/política americana, especialmente na virada do século XIX para o XX, que foi três vezes candidato quase vitorioso a Presidente daquele imenso país.
Não estranhamente, o protagonismo dos advogados em “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”) é inversamente proporcional à relevância (para a trama) dada ao juiz que preside o julgamento do filme. De fato, o juiz Mel Coffey (personagem de Harry Morgan) limita-se a observar a batalha entre os titãs ficcionais Matthew Harrison Brady e Henry Drummond. Como apontam os já referidos Steve Greenfield, Guy Osborn e Peter Robson, sua principal decisão, claramente ironizada no filme, foi “conseguir que Henry Drummond fosse nomeado coronel do estado do Tennessee, como o seu adversário, para prevenir que uma maior autoridade estivesse investida em seu oponente”.
O filme de 1960 é ainda conhecido e elogiado por tratar de alguns dos grandes problemas enfrentados pela sociedade americana, entre eles o radicalismo religioso, o moralismo e o preconceito que, permeando toda a vida na pequena Hillsboro, de logo faziam do julgamento do jovem professor Bertram T. Cates (interpretado por Dick York) um “jogo de cartas marcadas”. O júri de “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”), como representativo daquela sociedade, compartilhava, em sua imensa maioria, por exemplo, os mesmos valores religiosos fundamentalistas de viés criacionista. E o filme faz uma crítica explicita ao preconceito dos jurados, algo que, para quem milita nessa área, é bastante conhecido, frequentemente prejudicando a imparcialidade dos julgamentos no tribunal do júri. Numa excelente cena de tribunal, no momento da escolha/rejeição dos jurados, o advogado defesa Henry Drummond começa perguntando a alguns potenciais jurados se eles acreditam na bíblia e se já ouviram falar de Charles Darwin (1809-1882). Mas, em determinado momento, constatando que o radicalismo religioso estava impregnado naquela comunidade, e querendo deixar isso claro, ela passa a rejeitar os jurados após apenas fazer a pergunta “como vai você?”. Aliás, o filme, nesse ponto, como anota o já citado Christian Guéry, busca ser fiel ao que se deu no caso real em que se baseia. No caso verdadeiro, restou famoso o diálogo de Clarence Darrow, atuando como advogado de defesa, com um dos potenciais jurados. O famoso advogado perguntou ao jurado se ele já havia discutido a teoria da evolução, se havia entendido os sermões sua igreja sobre o tema, se havia entendido o que o promotor falara ou se tinha anteriormente escrito sobre o assunto. O potencial jurado responde que não, que tinha pouco estudo e que, na verdade, nem sabia ler, ao que Darrow replica, brilhantemente: “Bom, você tem uma chance” [“de ser imparcial”, acrescento eu].
Bom, para finalizar, faço apenas mais uma observação: assistam ao filme “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”). Vocês vão gostar deveras.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP