ODE A CASA DA CULTURA –
Fotos, recortes amarelecidos de jornais, álbuns perdidos, lembranças mortas, tudo se resume no que ficou de mim no caixote que mandei buscar em Macaíba. Quase cinquenta anos estavam ali amontoados sem me passar a certeza de que fui feliz. Viagens, lugares, reuniões, festas, política e políticos, o lar, as pessoas, o trabalho, os entes queridos, as entrevistas, os fatos, os enganos e os engodos, as ações e as traições, as frustrações, tudo, enfim, um baú de vida tecida e vertida em momentos fugazes mas com profundidade. Mesmo assim, era o meu inventário de aparências. O revelado e o relevante. Sim, porque as verdadeiras ações ficaram no pensamento, no que quis realizar e não consegui: porque o melhor de todos nós se encontra no irrevelado.
Sobre a mesa, o pacote empoeirado desafiava-me a memória. De plano, lembrei-me que muitos desses documentos foram náufragos há quase cinquenta anos, aproximadamente, de uma enchente que inundou a rua Francisco da Cruz nº 39, de minha mãe. Com a permissão do destino, os papéis não foram afetados menos outros, levados pela correnteza. Naqueles ali, apenas constatei o pó e a pigmentação do tempo. Estava diante de mim mesmo resumida a maior parte de minha vida? Perguntei-me. Vejam mesmo, meus caros leitores, o quanto é fuleira a vida quando a colecionamos ou a resumimos em vaidades. Era feliz e não sabia? Frase passageira e trivial ao texto. O fato é que enfrentei a memória contextual, os meus pedaços de vida, soltas, saídas do útero da casa mater, como único e suficiente tesouro do eterno aprendiz.
Um pacotaço maior e robusto havia me surpreendido à esquerda, naquela tarde de redescobertas. Tratava-se da coleção de diplomas, condecorações, títulos, troféus, placas, medalhas, etc. Era a coleção “vanitas, vanitatis”, que pendurara, ao longo do tempo, nas paredes da sala da frente. Testemunhas documentais de homenagens passageiras. Do mérito bajulatório umas e de fieis reconhecimentos outras. Enfim, passatempos. De que me servirá hoje tudo isso porquanto só a mim interessa? Penso assim, porque sempre o mundo dá e ele mesmo tira. O que importa é que agora sem a casa de Macaíba não tenho onde colocar meus inúmeros penduricalhos. Resido em casa menor, despojada de arquitetura senhorial que abrigava com pompa e circunstância meus escombros de guerra.
Mas, há algo que lá deixei, além das sementes e da vida dos meus pais, em cada parede, sala e jardim. Uma iniciada biblioteca constituída de bons livros de autores nacionais e principalmente do Rio Grande do Norte. Nas boas mãos de uma bibliotecária pode representar um bom começo para os futuros habitantes. Doei-os a Casa da Cultura Popular “Nair de Andrade Mesquita” na expectativa maior de que os jovens de minha terra conheçam mais os autores potiguares. Em suma, eis o meu inventário. Modesto, raquítico, dietético, extraído daquele casarão onde habitou tanto amor, enxugou muitas lágrimas e perfumou sorrisos. Mas, ali tudo era assim mesmo: modesto, pobre, sem ostentação. Era verdadeiramente a casa do povo e que hoje é a casa da cultura popular, sem deixar de ser do povo. Não sei, mas sinto que há desígnio superior em tudo isso.
Valério Mesquita – Escritor, Membro da Academia Macaibense de Letras, Academia Norte-Riograndense de letras e do Conselho Estadual de Cultura e do IHGRN– mesquita.valerio@gmail.com
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