O Brasil vive uma situação contraditória: o país produz energia renovável em excesso, mas ainda precisa ligar usinas termelétricas — mais caras e poluentes — para suprir a demanda em momentos de pico. O cenário tem como consequência um custo maior ao consumidor e desafios para a operação do sistema.
Segundo projeção do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), em 2028, o Brasil terá uma demanda de 110,98 gigawatts de energia, contra uma oferta que pode chegar a 281,56 gigawatts ao final de 2027. Ou seja, a oferta vai superar a demanda em 2,5 vezes (veja arte abaixo). 1 gigawatt de capacidade pode iluminar mais de 1 milhão de residências por ano, a depender da fonte.
Essa situação de oferta maior que a demanda não é totalmente positiva, já que implica em desperdício e aumenta custos (entenda mais abaixo).
“Na hora em que você tem essa situação, o que tem que fazer como Operador Nacional do Sistema Elétrico? Tem que limitar essa geração. E aí você vai ter que limitar essa geração por algumas características. Vai ter que verter água, ou vai verter sol, ou vai verter vento”, explica o diretor-geral do ONS, Luiz Carlos Ciocchi.
No setor, “vertimento” acontece quando se abre o vertedouro, que controla o fluxo de água da usina hidrelétrica, para deixar correr a água que não vai ser utilizada para geração de energia. Também para as fontes solar e eólica,significa deixar de usar o recurso natural para geração de energia – é como “jogar fora” a capacidade de gerar.
Ainda assim, cada vez mais o ONS vai precisar acionar usinas termelétricas em momentos de pico de consumo. Isso ocorre porque o excesso de energia se dá durante o dia, em razão da geração de energia renovável, que começa a cair no início da noite.
Para o ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) Edvaldo Santana, os subsídios são os responsáveis pelo descompasso entre oferta e demanda de energia.
Os subsídios funcionam assim: para incentivar algumas fontes de energia, como eólica e solar, o governo concede descontos para as usinas nas tarifas de uso dos fios para distribuição e transmissão de energia. Esses descontos (subsídios) são custeados pelos consumidores, inclusive os residenciais.
Os subsídios foram mantidos mesmo depois de essas novas fontes de energia se tornarem mais baratas, o que acabou incentivando a construção de mais usinas eólicas e solares.
Santana explica que o planejamento do setor deveria seguir a premissa de que a oferta deve acompanhar a demanda por energia, o que prevê também alguma margem a mais de oferta no caso de falta de chuva e seu impacto sobre as hidrelétricas, por exemplo. Mas, no Brasil, a oferta está passando muito dessa margem.
“De um tempo para cá, mais ou menos de 2013 e 2014 para cá, as fontes renováveis — e isso é bom para o Brasil — tiveram muito crescimento na participação na matriz elétrica, só que tudo isso movido a subsídio. Excesso de subsídio para fontes que não precisavam provocou o aumento enorme de oferta, que se deslocou da demanda. Hoje, a oferta é mais que o dobro da demanda se for medir em termos de capacidade instalada [o quanto cada usina pode gerar]”, destaca o ex-diretor da Aneel.
O superintendente adjunto da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Renato Haddad Simões Machado, explica que o governo concede incentivos a uma tecnologia quando quer promover a sua entrada no sistema ou quando quer levá-la a locais aonde o investimento privado não chegaria naturalmente.
“O grande problema é quando esses subsídios deixam de ser necessários. Por exemplo, você quer incentivar uma determinada tecnologia para entrar no sistema e ela já se desenvolveu, já entrou no sistema, já está num grau de maturidade, e você não precisaria mais ter aquele subsídio atuando. Quando chega nesse momento, você acaba trazendo distorções de mercado”, declarou.
Machado conta ainda que uma dessas distorções é a expansão de uma tecnologia que não seria necessária ao sistema, mas se torna atrativa economicamente para as empresas por conta dos subsídios.
Foi o que aconteceu com a energia eólica e solar. A manutenção dos descontos, mesmo depois da consolidação dessas fontes no Brasil, levou ao seu crescimento exponencial. Segundo o ONS, em 2023, a energia eólica já representava 12,8% da matriz elétrica nacional, e a solar, 5%.
Para termos de comparação, as usinas hidrelétricas representam47,1% do sistema. E as termelétricas (mais poluentes), respondem a 12,2% do total.
As hidrelétricas e as usinas termelétricas podem gerar de forma flexível, ou seja, o ONS pode acionar essas usinas quando perceber que precisa de mais geração para suprir a demanda. Dessa forma, esses empreendimentos servem como uma “reserva” para o sistema.
Com o aumento na geração de energia eólica e solar, também cresce o desafio do sistema para dar conta da demanda no momento em que a geração de energia por essas fontes cai, no início da noite.
O problema é que é difícil armazenar o que é gerado por essas fontes. Então, a energia precisa ser consumida na mesma quantidade e no mesmo momento em que é ofertada.
“A questão das fontes intermitentes (eólica e solar), que vêm crescendo bastante e são importantes para mantermos uma matriz mais limpa e sustentável, [é que] elas carecem um pouco de alguns requisitos de confiabilidade que só algumas fontes tipo síncronas (térmicas ou hidrelétricas) podem proporcionar, possuem maiores requisitos para proporcionar maior confiabilidade”, explica o diretor de Estudos da Energia Elétrica da EPE, Reinaldo Garcia.
O ONS já tem acionado usinas termelétricas para suprir os picos de demanda. Isso foi feito em novembro e dezembro do ano passado, por exemplo, quando o Brasil estava batendo picos de demanda ao final do dia. Para 2024, o operador já sinalizou que vai precisar manter o despacho dessas usinas.
Contudo, para 2028, o ONS projeta uma “rampa de queda” de 50 gigawatts de oferta de energia eólica e solar ao final do dia. É como se quase quatro usinas de Itaipu fossem desligadas todas as noites.
Nesse caso, será necessário contratar mais usinas flexíveis. “Hoje, se eu tiver uma rampa dessas para subir, não tem recursos para isso”, diz Ciocchi.
Segundo Machado, da EPE, suprir esses picos de demanda é um papel desempenhado historicamente pelas hidrelétricas.
Contudo, há mais desafios hoje para se construir grandes hidrelétricas que possam atender a essa demanda. A restrição ambiental para explorar o potencial em áreas sensíveis e o efeito das mudanças climáticas são algumas razões que afetam a implantação dessas usinas.
“Mas hoje temos uma situação em que grande parte do potencial hidrelétrico que ainda temos a explorar está em regiões de mais difícil [viabilização], questões ambientais mais sensíveis, longe do centro de carga [demanda]. Então, precisamos, sim, de um complemento, que as hidrelétricas por um tempo vão conseguir suprir, mas é necessário que tenhamos outro tipo de recurso no sistema”, afirma.
O ex-presidente da EPE e diretor executivo da consultoria PSR, Luiz Barroso, também cita as mudanças climáticas como um fator que deve impactar a capacidade das hidrelétricas de suprir os picos de demanda.
“Vamos ter cada vez mais o efeito das mudanças climáticas nas vazões e vamos ter cada vez mais a disputa pelo uso da água. Então, a água vai passar a ser um bem cada vez mais escasso, e as hidrelétricas vão ter cada vez maiores restrições para operar seus reservatórios”, declara.
Para Machado, da EPE, as termelétricas seriam uma “opção natural” para desempenhar esse papel.
“[Mas] existem outras tecnologias que podem entrar, que outros países já têm utilizado, como bateria, resposta da demanda. Ou seja, você dar um sinal para o consumidor reduzir o consumo naquele momento, você aumentar a capacidade instalada nas usinas hidrelétricas que já existem”, destaca.
Além de contratar novas térmicas, o diretor-geral do ONS também aponta o acionamento de usinas mais antigas. Outra estratégia seria acelerar o programa de resposta da demanda.
“Ou seja, ao invés de aumentar a geração, criar incentivos para grandes consumidores reduzirem a demanda nos horários mais críticos. Ao invés de adicionar uma energia mais cara, dar algum incentivo para alguém parar de consumir naquele horário”, afirma o diretor-geral do ONS.
Como não se armazena o que é gerado pelas usinas eólicas e solares, a energia dessas fontes precisa ser consumida na mesma quantidade e ao mesmo tempo em que é ofertada. É uma característica física dos sistemas elétricos.
O risco, caso o consumo não esteja sincronizado com a produção, é de causar danos ao sistema.
“O Operador tem que ficar atento, porque senão as consequências para o sistema podem ser desastrosas. E [tem que] avaliar a capacidade e a produção de energia de todas essas fontes do Brasil inteiro, fazendo de uma forma coordenada desligamentos dessas fontes para que continue mantendo em vigor as leis dos circuitos elétricos”, explica Ciocchi.
Dessa forma, o ONS pode pedir o desligamento de usinas para evitar que haja um desequilíbrio entre a energia ofertada e o consumo no sistema elétrico. Ciocchi alerta que deixar de usar o potencial de geração por falta de demanda já é uma realidade, que tende a ser mais frequente.
“Todos os dias você tem esse desafio, em particular nos finais de semana, porque nos finais de semana a nossa carga [demanda] é ainda menor, porque a atividade econômica não está na sua plenitude”, declara o diretor-geral do ONS.
Santana, ex-diretor da Aneel, defende que o governo incentive o consumo industrial em momentos de excesso de oferta, barateando a energia.
“Isso foi feito até a década de 1980, chamava-se ‘energia garantida por tempo determinado’. Você garantia a energia para alguns consumidores — na época era só a indústria —, durante um tempo, para aumentar o consumo naquela região e não precisava construir tanta transmissão para exportar [para outras regiões do país]”, explicou.
Santana destaca que o cenário atual de excesso de energia não seria completamente resolvido por uma política de incentivo ao consumo, mas o problema da energia “jogada fora” seria atendido.
O sistema elétrico é organizado em geração, transmissão e distribuição. As usinas geradoras de energia se conectam à rede de transmissão, que corta o país e é operada pelo ONS.
A rede de distribuição, por sua vez, está na outra ponta, e tem sua operação mais localizada, a nível estadual ou de agrupamentos de municípios. Ela está ligada à transmissão e faz a distribuição da energia aos consumidores. Nessa etapa quem atua são as empresas distribuidoras, que são as que cobram a conta de luz do consumidor.
O governo contrata a construção e manutenção das linhas de transmissão por meio de leilões. As usinas conectadas ao sistema usam essas linhas para fornecer energia.
Nos casos em que o ONS precisa ”verter” ou “jogar fora” a energia, as usinas deixam de usar os recursos naturais. Ou seja, as hidrelétricas abrem os seus vertedouros e deixam a água passar sem mover as turbinas para geração de energia, as eólicas deixam de girar suas pás e assim por diante.
Por causa da quantidade de usinas que estão sendo construídas, os leilõestêm batido recordes sucessivos de investimentos previstos. Só em 2023 foram contratados R$ 37,4 bilhões em linhas de transmissão.
Esses últimos certames foram realizados para contratar a infraestrutura necessária para escoar a energia eólica e solar produzida no Nordeste e no norte de Minas Gerais. São linhas que estão sendo construídas por causa do excesso de oferta, mas que vão ficar sem uso em muitos momentos, já que não há demanda.
“A transmissão em qualquer lugar do mundo participa com no máximo 7% da tarifa total [de energia, paga pelo consumidor]. Aqui, vai participar de mais e vai operar em vazio porque na maior parte do tempo não vai ter o que transmitir, vai ter que esperar carga [demanda]”, explicou Santana.
Para o diretor-geral do ONS, é importante questionar quem vai pagar pelas linhas de transmissão. “Quem vai pagar por uma adição de infraestrutura que nós, nesse momento, não precisamos?”, questiona, referindo-se à baixa demanda.
Segundo Barroso, da consultoria PSR, os investimentos em transmissão são um dos fatores que tendem a pressionar a conta de luz.
A construção dessas linhas é remunerada pela Receita Anual Permitida (RAP) das empresas vencedoras dos leilões, que é definida pela Aneel. A RAP vai parar na tarifa de qualquer agente que acesse a transmissão e são repassadas ao consumidor. Com os altos investimentos em transmissão, esse componente da tarifa tende a aumentar.
“Redes vão ser uma parcela da conta de luz, que vai aumentar porque estamos construindo muita transmissão de alta tensão. Esses leilões todos que estão fazendo sucesso viram conta, e conta para pagar”, afirma Barroso.
O ex-diretor da Aneel, Edvaldo Santana, afirma que todos os consumidores são impactados por esses custos, mas o consumidor residencial deve pagar mais. “O pequeno consumidor vai pagar mais, porque não tem flexibilidade de negociar o melhor contrato com uma comercializadora ou gerador.”
Por outro lado, o superintendente adjunto de Transmissão da EPE, Marcos Vinicius Farinha, defende que a transmissão deveria ser encarada como um investimento, no lugar de custo.
“Não podemos olhar a transmissão só pelo custo dela. Ela tem um valor associado que é justamente trazer essa geração, ou conectar essa geração, mais barata, e no final das contas essa expansão minimiza o custo para o consumidor”, conclui.
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