Diógenes da Cunha Lima
“Contra mim levantaram-se testemunhas falsas”. Salmo, 27.12
“E se falseardes vosso testemunho ou vos recusardes prestá-lo, sabei que Deus está bem inteirado do quando fazeis”. Do Alcorão, Surata, 4,135
Dar falso testemunho é descumprir a lei penal e, ao mesmo tempo, muitos dos mandamentos da lei de Deus. É abominação perante Ele, como diz o livro dos Provérbios. Quando se diz que um homem é santo, ele é necessariamente justo. Isso parte do princípio de que todo homem tem direito à justiça. A verdade é pré-condição para que se faça justiça.
Não é sem razão que os juristas criaram uma designação especial para a prova testemunhal, a prostituta das provas. Nós, profissionais do direito, advogados, juizes, promotores, sabemos e nos indignamos quando ouvimos a mentira elevada à condição de depoimento. Existe até a figura abjeta da testemunha como profissão, para firmar ou negar fatos. Confirmam de olho duro as inverdades, falam todos os idiomas da mentira, os dialetos da falsidade. Confirmam, solenemente, o que os olhos não viram e o que ouvidos não escutaram perante os juízes.
O grande juiz Eutiquiano Garcia Reis percebeu que uma depoente analfabeta estava mentindo. Parou a audiência, mandou que a mulher colocasse a mão sobre o livro (era um Código Penal) e disse: “Agora, a senhora vai jurar com a mão sobre a Bíblia, para Deus, que está dizendo a verdade”. A mulher colocou a mão em cima do código e disse: “Jurando, doutor, a coisa é diferente…”
A mais terrível das mentiras é a do depoimento em matéria criminal, é a que fere a liberdade, a que dá conseqüências mais graves. Palavras mudam destinos. O poeta Bob Motta fez quadrinha definitiva sobre o assunto:
“Quem dá falso testemunho,
Jurando solenemente,
Às vezes livra um culpado,
Às vezes culpa um inocente.”
Mais grave ainda é a meia-verdade, a que deixa o julgador em terreno movediço, cria ambigüidade e leva à destorcidas interpretações.
Uma curiosidade é ter a palavra testículo, a glândula sexual masculina, a mesma origem de testemunho, do latim testis. Era a pessoa chamada a assistir, como testemunha, à cópula dos recém-casados para atestar o casamento consumado, sua autenticidade.
Talvez a testemunha sem-vergonha tenha dado nascimento ao ditado romano testis unus, testis nullus, ou seja, testemunha única, é testemunha nula. Seria preciso a confirmação de outras. O nosso direito, no Brasil não dá importância a esse enunciado. Pode uma única testemunha ser verdadeira.
As pessoas são chamadas a juízo para dizerem o que sabem, viram ou ouviram. Não me parece certo o ditado francês témoin qui a vu est meilleur que celui qui a öui. Os olhos não são melhores que os ouvidos. Ambos enganam, pior é a intenção de quem fala.
A boca do ser humano pode conter mais veneno do que a boca de uma cobra cascavel. Quem não é servidor dos fatos, mente. Quem mente é um ser inferior. A mentira tem, muitas vezes, a aparência brilhante, e nem sempre é bonita a verdade.
Sabem os que trabalham com palavras que a verdade é uma flor delicada que, manuseada, perde a sua função, a beleza. Sabemos também que, no terreno dos humanos, toda a verdade é relativa. Somente Deus É.
A verdade deve ser natural, não imposta. Câmara Cascudo me mandava, como a vários professores de português, Professor Saturnino, José Melquíades, Arnaldo Arsênio, pingar os originais dos seus livros. Nem sempre ele estava de acordo com a ortografia oficial, mesmo a estabelecida em dicionário. Pingar era extorquir a verdade. O julgamento do ordálio. Na Idade Média, os inquisidores amarravam o acusado com a barriga descoberta e pingavam azeite fervente para que eles confessassem os seus “crimes”. Quem não confessaria ser feiticeiro, voar em uma vassoura?
Era ordálio o juízo de Deus sem combate. A pessoa, submetida a sofrimento, confessava qualquer acusação. Está no Manual dos Inquisidores, no Século XIV de Nicolau Emérico: “aplicar-se-á a tortura a fim de lhe poder tirar da boca (do acusado) toda a verdade”. Mandavam também o acusado colocar a mão no fogo. Se queimasse era prova da culpa, se não queimasse, inocente, e imediatamente libertado… Daí, criou-se a expressão não boto a mão no fogo por ninguém.
Diógenes da Cunha Lima – Escritor e presidente da Academia de Letras do RN
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