ORDENAÇÃO E LITERATURA FILIPINAS –

Acredito que quase todos os estudantes de direito já ouviram falar das Ordenações Filipinas. Essa “compilação jurídica”, em virtude do domínio espanhol sobre Portugal, iniciado à época do Rei Filipe II de Espanha (Filipe I de Portugal), esteve em vigor no Brasil durante muitos anos. Substituiu as portuguesas Ordenações Manuelinas, que, por sua vez, haviam feito o mesmo com as Ordenações Afonsinas. A compilação restou pronta e sancionada em 1595, ainda sob o reinado de Filipe II de Espanha, mas só foi de fato observada a partir de 1606, com sua impressão e divulgação, já sob o reinado de Filipe III de Espanha (Filipe II de Portugal). As famosas Ordenações Filipinas, portanto, originalmente, não são um produto português nem brasileiro. Entretanto, vigoraram em Portugal e no Brasil mesmo após o período de dominação espanhola, uma vez que foram mais tarde confirmadas pelo rei português D. João IV. Entre nós, afirma-se, vigoraram até o ano de 1830, já durante o Brasil Império.
Certamente, menos conhecida da comunidade jurídica é a circunstância que redundou no domínio espanhol sobre Portugal e, consequentemente, sobre o Brasil Colônia. Com a morte de D. Manuel, o Venturoso, em 1521, ascendeu ao trono D. João III, seu sucessor natural, que governou entre 1521 e 1557. D. João III foi substituído pelo seu filho, D. Sebastião, que era ainda uma criança. D. Sebastião reinou até 1578, precisamente quando, sonhador de batalhas e conquistas, decidiu empreender uma tresloucada “cruzada” cristã contra os mouros Marrocos a dentro. A ideia de D. Sebastião era de tal forma desmedida que o próprio Felipe II de Espanha desestimulou-o, referindo-se à total impossibilidade de vitória. O resultado desastroso não se fez esperar. Na batalha de Alcácer Quibir, em agosto de 1578, as tropas portuguesas foram dizimadas.
À época, segundo se sabe, D. Sebastião estava com 24 anos de idade e simplesmente desapareceu com a derrota de suas tropas. D. Sebastião, muito provavelmente, faleceu no campo de batalha. Mas para o povo português, à época, seu rei estava apenas desaparecido. Aliás, Filipe II de Espanha e I de Portugal mandou trasladar um corpo para o Mosteiro dos Jerônimos em Lisboa, alegando ser do rei desaparecido, na vã esperança de acabar com o Sebastianismo. Uma vez conhecido como o “O Desejado”, D. Sebastião passou a ser conhecido como “O Adormecido”, devido à lenda que se criou em torno do seu retorno, envolto em um nevoeiro, como salvador da nação portuguesa.
As repercussões do desastre seriam sentidas durante anos a fio. D. Sebastião, até pela pouca idade, não deixou filhos, tampouco tinha sucessor direto de sua linhagem, como um irmão, por exemplo. A solução foi coroar D. Henrique, que era o mais direto postulante, mas era idoso, cardeal e celibatário. Problema apenas adiado, portanto. Em dois anos, D. Henrique faleceu, deixando a sucessão em Portugal indefinida. Depois de complicada disputa entre três pretendentes, as tropas espanholas, comandadas pelo conde de Alba e sem enfrentar qualquer resistência, atravessaram a fronteira em agosto de 1580 e, em dezembro do mesmo ano, Felipe II de Espanha (que era neto de D. Manuel, o Venturoso, e era viúvo de Dona Maria de Portugal) foi recebido em Portugal. Em abril de 1581, o novo rei lusitano convocou a primeira corte de Castilla em Portugal e prestou juramento. Assim, Felipe II de Espanha foi consagrado Felipe I de Portugal.
Certamente ainda menos conhecido da comunidade jurídica é o fato de que o período dos Filipes (de Filipe I a Filipe IV), em Espanha, é também conhecido como o Siglo de Oro, época de apogeu da cultura e, sobretudo, da literatura espanhola. A grosso modo, esse apogeu das letras espanholas, que abarca o renascimento e o barroco na Espanha, vai de fins do Século XV até fins do século XVII, com o falecimento de Calderón de la Barca.
Para se ter uma ideia, é o tempo de Miguel de Cervantes (1547-1616), autor do monumental “Don Quijote”, entre outras obras em prosa e poesia. É o tempo da poesia, da prosa e do grande teatro de Lope de Vega (1562-1635), com sua maravilhosa “Fuenteovejuna”. Da prosa de Baltasar Grancián (1601-1658) e Mateo Alemán (1547-1614). Do teatro de Tirso de Molina (1571-1648) e Calderón de la Barca (1600-1681). Da poesia de Francisco de Quevedo (1580-1645) e Luis de Góngorra (1561-1627). E, para os mais espiritualizados, é ainda o tempo da poesia mística de Fray Luis de León (1528-1591), Santa Teresa de Jesús (1515-1582) e San Juan de la Cruz (1542-1591).
Mas voltando às Ordenações Filipinas, delas diz-se que, por procurarem seguir, artificialmente, o estilo e a estrutura das Ordenações Manuelinas (como uma forma de mostrar ao povo português respeito por suas tradições), acabou restando uma compilação de má qualidade, intrinsecamente falando, apenas mantendo ou mesmo acentuando as contradições e lacunas da anterior ordenação portuguesa.
Divagando, assim me pergunto: por que a Espanha não nos exportou, ao invés das problemáticas Ordenações Filipinas, seus literatos filipinos? E apenas divago, pois duramente aprendi que, infelizmente, não se pode voltar no tempo e corrigir certos erros; apenas é possível, reconhecendo esses erros, agir melhor no futuro.
Mas quem sabe, talvez, se assim tivesse sido, por aqui não estaríamos poetando que “en un lugar de lo Rio Grande do Norte, de cuyo nombre no quiero acordarme, no há mucho tiempo que vivía un hidalgo…”.

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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