OS ARGENTINOS SÃO TÃO EUROPEUS ASSIM? –
O presidente argentino, Alberto Fernández, disse recentemente que os argentinos chegaram da Europa, os mexicanos descendem de indígenas e os brasileiros vieram da selva. Por trás disso há a mítica de que eles são brancos e nós, predominantemente, descendentes de escravos. Quanto a eles serem totalmente brancos, há controvérsia.
Vamos aos fatos. Em 1778, um terço da população da Argentina, cerca de 30 mil pessoas, eram “gente de cor”. Em Buenos Aires havia 24.205 habitantes, dos quais 15.179 (62,71%) eram espanhóis, estrangeiros ou mestiços; 7.270 (30,04%) negros ou mulatos, e 544 (2,25%) índios, mais 1.212 (5,00%) indivíduos que não foram identificados. A análise de dez censos demográficos realizados na cidade de Buenos Aires, de 1778 a 1887, mostra que, em oito deles, a população de origem africana oscilava entre 24,7% e 30,1%. Afora os números frios das estatísticas, têm-se evidências outras para comprovar o grande contingente de negros na população da capital. Uma dessas comprovações está no número de bairros cuja população negra era, se não majoritária, bem representativa: San Telmo, Monsarrat, Concepción, La Piedad, Balvanera.
Algumas explicações são dadas para o declínio da população negra da capital portenha: a grande imigração de europeus; a extinção da importação de escravos; a grande mortandade de soldados negros nas guerras de 1810 a 1870; as péssimas condições de vida que os sobreviventes das guerras tiveram que enfrentar no regresso, na qualidade de libertos porém sem trabalho, sem ter onde morar e sem ter o que comer; o baixo índice do crescimento vegetativo dos negros e, não menos importante, a mescla racial que teria embranquecido os argentinos de origem africana – Bernardino Rivadavia, o primeiro presidente argentino, apelidado de “doutor chocolate”, seria um mestiço com ancestrais africanos. Houve, ainda, a transferência estatística de um grande segmento de pardos e morenos, reclassificando-os como brancos, como diz George Andrews.
A herança negra na Argentina está na própria alma dos argentinos. A maior contribuição da raça negra está na expressão artística nacional, resultando naquela que é hoje considerada como a personificação mais legítima do ser portenho. Primeiro era uma música profana, “com um ritmo bárbaro”, executada por tambores, atabaques e outros instrumentos membranófonos, acompanhada por um bater constante com as palmas das mãos e por um canto sincopado. A dança era sincrônica, frenética, quase ato sexual. Eram os candombes dos negros de Buenos Aires, entre o meado e o fim do século XVIII, quando eram eleitos os reis e rainhas das várias “nações” (etnias) negras. Depois, como resultado do sincretismo de culturas africanas e europeias, houve uma espécie de abrandamento da música, do ritmo e da dança, o que resultou em uma ladainha, um embalo, quase música cristã: era a forma dos negros, escravos e libertos, participarem da procissão de Corpus Christi. Outra transformação, de volta às origens africanas, agora uma procissão dançante, não religiosa, “os tambores”, que eram realizados todos os domingos e feriados. Era a festa dos negros de Buenos Aires, que durava de meio dia até altas horas da noite, à qual compareciam o Ditador Rosas, sua família e altos funcionários do governo.
Com a grande emigração de europeus, essa música e dança foi contaminada por outros gêneros musicais; a “habanera” e a “milonga”. O primeiro é um ritmo de origem afro-cubana que foi levado para a Espanha e que, modificado, retornou à América. É uma música de compasso binário, tendo o primeiro tempo fortemente acentuado, uma curta introdução, seguida de duas partes de oito compassos cada uma, com modulação do tom crescente. O segundo é um canto e dança da Andaluzia que, nos fins do século XIX, popularizou-se nos subúrbios de Montevidéu e Buenos Aires.
A própria palavra tango seria de origem africana: local de bailes, canto e dança. Nos subúrbios de Buenos Aires, em fins do século XIX, o tango adquiriu configuração especial, em compasso binário, andamento moderado e ritmo sincopado e langoroso.
PS: – Mais detalhes em meu livro “Os Escravos: da escravidão antiga à escravidão moderna”.
Publicado originalmente pela Tribuna do Norte. Natal, 19 jun. 2021
Tomislav R. Femenick – Jornalista, historiador e membro do IHGRN