Diógenes da Cunha Lima

A dimensão poética e o bom humor conferem ao homem uma visão diferente.

Pouca gente se lembra de que foi um asiático judeu que mudou, a pedido da mãe dele, em uma festa de casamento, a água em vinho. Com isso mostrou não só a nobreza do vinho, a importância da água e da celebração da vida até com um milagre. O fato ocorreu na Palestina, região em que, como no Nordeste brasileiro, a água é escassa. A escassez aumenta-lhe o valor.

O nordestino carrega um sol e o deserto no coração. Quer a água incolor e inodora, composta basicamente de hidrogênio e oxigênio. E vêem os seus olhos apenas as grandes massas verdes e azuladas do Atlântico, inconsumíveis. O nordestino tem o ouvido atento ao trovão e é um pastorador de relâmpagos. Em Caiçara do Rio do Vento , tão carente de chuvas, ouvi o desabafo: “a terra aqui é boa, o céu é que não presta”. E quando chove nessas bandas, nem sempre há moderação. São águas velozes, turvas que escarvam as ribanceiras. São águas assustadas, sem barragens ostensivas e subterrâneas, que correm para o mar.

Para as águas, viver é cair. Sem o declive as águas são mortas, lodosas, pântanos. É preciso fazer a circulação das águas. Para a vida.

Cinqüenta irmãs noivas casaram com cinqüenta irmãos. Quarenta e nove mataram os maridos na primeira noite. Foram condenadas, as danaides. Muitas vezes, os poetas do Nordeste ficam tristes por se sentirem como as danaides, “povos da água, do mar” que são forçados a enfiar água no espeto, ou, extrema habilidade astuciosa, dar nó em pingo d’água.. A condenação é semelhante à da mitologia grega: carregar água numa peneira ou a encher de água, eternamente, um tonel sem fundo.

Precisávamos realmente da água casta e preciosa, útil e humilde, a irmã água assim louvada por São Francisco. Salva-nos o Santo e o Rio. Precisamos de água corrente que não mata a gente, a lâmina móvel, de líquida e agradável voz.

Os poetas são profissionais do mito. Criam, revelam ou dão relevo ao mito. Os poetas sabem, por intuição, que a água é a matéria prima do homem, da criação do mundo, do poema. Todo poema é uma deificação do homem. Todas as religiões têm na água a purificação e a regeneração: o cristianismo, as religiões ameríndias e africanas, o islamismo, o budismo, todas. O Gênesis registra que o espírito do Senhor pairava sobre as águas. As abluções, o batismo como arrependimento e purificação, as bênçãos solenes da água no Sábado de Aleluia, a limpeza do corpo que lava a alma, nos rios. Também águas depositadas em pias na entrada das igrejas para que se persignem os fiéis. Água benta para aspersão nos exorcismos e para afastar o demônio.

No Nordeste, tem valor especial a água-dormida, que se deixa durante a noite ao sereno e que retira das estrelas grandes virtudes terapêuticas.

Nesta civilização tropical, está a proposta de Gilberto Freyre para fazermos o elogio dos rios, principalmente os pequenos “pela importância que tiveram na formação rural do Brasil… Rios sanchos-panças, sem os arrojos quixotescos dos grandes.” Entre o Trópico de Câncer e o Trópico de Capricórnio estão seres humanos e águas. Homens humilhados pela agressiva inferioridade de “cientistas” das civilizações temperadas. Os poetas, nem sempre humildes, não aceitam a desvalorização do homem tropical.

Todo homem tem um rio correndo na sua infância, rio que corre na clara lembrança, fio d’água, riacho, riachão ou Amazonas, o pai das águas. Mas rio fertilizador, rio que dessedenta, rio que permite a vida, água que não envelhece. No Antigo Testamento, a água era a vida eterna. No Novo Testamento, o Cristo é a fonte de água viva.

Toda água é mineral, independentemente de encerrar percentagens maiores de sais minerais. Sendo do reino mineral, é vida do reino animal e do vegetal

É preciso lembrar a água com poder de destruição, o dilúvio. Dilúvio que está na memória coletiva de todos os povos, dos israelitas aos índios Kaingang do Paraná. Águas matadoras dos egípcios na abertura do Mar Vermelho. Estas são as águas que dão lágrimas. Eu disse lágrima? Lágrima é água.

A água, simbolizada na lentidão e na indolência, para os antigos integra a quadratura dos elementos. Ao lado da terra, do fogo e do ar. Hoje já se sabe da água interestelar, das nuvens e águas cósmicas, da água na lua.

Nas fontes, nas nascentes, nas chuvas, nos rios e nos mares, nas mansas lagoas as águas são femininas. São reminiscências líquidas do acusativo aquam, de aqua-ae. Se o fogo é viril, a água é fêmea, e quando límpida é jovem. A mais clara de todas proibiria o envelhecimento, a Fonte da Juventude, com uma simples e ordinária bebida.

Vamos beber água da fonte, da mais pura poesia nordestina, criando e consumindo mitos.

Diógenes da Cunha LimaPoeta, escritor, advogado e presidente da Academia de Letras do RN

 

Ponto de Vista

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