AS PARALELAS DO TEMPO –

Coisas como o dólar paralelo (que quando dou uma de turista, me faz sofrer), as conversas paralelas (que eu já nem ligo, de tão acostumado estou a elas), os universos paralelos (para onde a mente viaja quando leio livros ou vejo filmes de ficção científica), as escolas paralelas onde são ensinadas duas línguas ao mesmo tempo (que eu tô cansado de saber que existem), a elas estou bem habituado. Acostumado até aonde vai a “Transversal do Tempo” do João Bosco, que eu adoro ouvir, e diz mais ou menos assim: “As coisas que eu sei de mim … / Pedem, insistem e eu me sinto um pouco à vontade … / Numa transversal do tempo / Onde as coisas que eu sei de mim /Tentam vencer a distância / Como se aguardassem feridas / Numa ambulância …”. Bem como às paralelas dos pneus que o Belchior inventou “na água das ruas /duas estradas nuas …/ (e, diz ele que grita ) / quando o carro passa / teu infinito sou eu, sou eu, sou eu, sou eu …”  Tudo bem. Agora, o encontro inusitado com as paralelas do tempo, até bem pouco atrás, era novidade para mim.

Chegava eu num começo de tarde em casa, completando quase um terço de dia de trabalho ininterrupto e estafante. O calor abafado de março fritava a minha carne e, como que, rachava os meus ossos. Preparei uma beberagem que como refrescante, catalizadora do apetite em ascenção, assim como pra espalhar o sangue no corpo, não tem igual. Uma taça bem grande esborrotada de cubos de gelo, duas fatias grossas de tangerina, diminutos cubos de maçã pra dar o devido charme necessário à poção, quatro gotas de adoçante artificial, e vinho branco até o conteúdo quase transbordar o continente. Um sacrilégio para os bons bebedores de vinho . Pra mim, definitivamente, não.

Deitei na rede do escritório arrodeado dos meus livros preferidos que, enquanto não abertos, calados estão e não dão um pio, só me espiam, eu acho E dormi o sono profundo dos guerreiros. Acordei, o dia já chegando, e eu ainda cansado. No reflexo, pequei o livro “A Vingança” do Antonio Melo, que anda prendendo a minha atenção e de muita gente afeita a uma boa leitura, possivelmente, e os óculos pra perto no assoalho. Li umas quinze linhas do capítulo XVI, a parte onde se toma conhecimento do não tão fácil desligamento de Rosycleide do cabaré de Beth Cuscuz, uma negociação difícil, cheia de idas e vindas, ameaças, gritos e choro, pra ela largar a prostituição e ir viver em Teresina com Jorge e o seu filho (o dela), Dudé.

Eu me aproximei da janela aberta e vi o deslumbramento do dia se aproximando. Pro lado do nascente, uma luz quase púrpura a anteceder o aparecimento do sol. Na rua em frente, não havia vivalma, com exceção de um carro chegando e um motorista madrugador se dirigindo em direção à portaria do edifício. Na Rodrigues Alves, ao lado, o trânsito em sono solto. A empregada custaria a chegar, pensei, e sem querer acordar minha mulher tão cedo, decidi antecipar um pouco a azáfama do meu dia-a-dia. Me dirigi à cozinha já com os comprimidos do dia à mão. Remédios pro que se imaginar de mazelas e que usam as pessoas já bem usadas: estatinas, beta bloqueadores, anti hipertensivos, anti diabéticos orais, protetores gástricos pro combate do bate, o arrebenta e o assobio dos estômagos. E o Cialis diário pra combater as disfunções funcionais da terceira idade e fazer a profilaxia dos constrangimentos costumeiros causados por batidas de portas, telefonemas de filhos netos e sogras em horas inconvenientes, e sustos ao ouvir sons altos acontecíveis nas ruas que implicam frases clássicas como, “desculpa aí, amor, agora só amanhã, talvez”. Engoli os meus cachetes com um copo de suco de laranja de caixa e duas fatias de bolo inglês, coisas boas pra se enfrentar tais emergências.

Ao passar de volta pelo escritório, algo estranho tinha ocorrido. A noite tinha se antecipado ao dia. Tudo escuro, luzes iluminando a rua e as janelas dos prédios, o trânsito fluindo normal. Olhei pro meu relógio de pulso que não diferencia o AM do PM e fiquei bastante confuso. Cruzei o quarto de dormir. Todo arrumado e a cama feita. Liguei a televisão fechada e vi o noticiário das 18:00 horas rolando pela metade. Me liguei, também. O meu sono tinha sido de apenas quatro horas. Tinha acontecido a coincidência das coincidências: a visão do lusco-fusco dos crepúsculos matutino e vespertino na hora exata em que eles são idênticos. Nada que a cronobiologia não explique em nós desde que não hajam pistas de tempo no processo.

Pra ficar só com um exemplo prático, a falta de trabalho sábado e domingo (pista de tempo social ) atrasa o relógio biológico e induz um arrastamento natural de quase três horas na segunda feira. A mesma coisa como se dizer que os relógios parados coincidem as horas duas vezes por dia se não houver pistas temporais que diferenciem o dia da noite. As paralelas do tempo existem. Mergulhamos nelas às vezes. Estranho, muito estranho, mas acontece. Como quando sem assunto, vamos dando ordem às frases que vão chegando. Como muito bem disse Ivan Maciel dia desses: “Escrever sem ter assunto, na base da “palavra puxa palavra “ é um forma divertida de escrever. Será que é mesmo? Acho que a falta de assunto confere uma grande liberdade a quem escreve…”. Estou começando acreditar nisso. Pelo menos, gostoso é. Se funciona, são outros quinhentos. Na vida tudo acontece. Tudo vale.
José Delfino – Medico, poeta e músico
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