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Paulo 6°, o papa que tirou a Igreja Católica da Idade Média e virou santo

O pontificado de Paulo 6º já se iniciou sob o espírito da mudança — Foto: Domínio público

Eleito papa há 60 anos, em 21 de junho de 1963, Paulo 6º (1897-1978) foi o primeiro sumo sacerdote da Igreja a viajar de avião, visitou os cinco continentes e não fechou os olhos para questões contemporâneas em um mundo de globalização, Guerra Fria, corrida espacial e revolução sexual.

Para especialistas, ele foi o maior papa da história moderna da Igreja — justamente porque conseguiu fazer o movimento até então tido como improvável, ou seja, de trazer aquela instituição ainda presa ao tempo medieval para os debates do século 20.

“Muitos defendem que ele foi o maior papa da nossa era porque, além de ter uma visão de Igreja pastoral, uma teologia aprofundada, ele também sabia governar, tinha visão de estadista”, afirma à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre de Roma e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, também em Roma.

“Seu papado foi marcado pelo movimento de tentar transformar a Igreja Católica de fato numa instituição com penetração ao mundo interconectado do século 20, em um momento de grande expansão dos meios de comunicação e rápidas transformações”, analisa à BBC News Brasil o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“Isso em um contexto muito difícil, bélico, não muito distante da Segunda Guerra e com a Guerra Fria ocorrendo.”

O pontificado de Paulo 6º já se iniciou sob o espírito da mudança. Ele reabriu o Concílio Vaticano 2º, série de sessões que ocorriam desde 1962 no Vaticano com o objetivo de modernizar a Igreja.

Entre as decisões conciliares, houve a atualização litúrgica com a prioridade para os idiomas locais em detrimento do latim, uma maior afirmação do papel social da Igreja e o lançamento das bases para o diálogo ecumênico.

O teólogo britânico John Norman Davidson Kelly (1909-1997) enfatiza em seu livro The Oxford Dicionary of Popes que, tão logo o concílio foi concluído, em 1965, “Paulo começou a pôr em prática as decisões com grande coragem e um acurado sentimento sobre as dificuldades” decorrentes de tal processo.

De certa forma, foram seus atos como chefe da milenar instituição que prepararam o terreno para o surgimento de papas mais abertos ao diálogo e oriundos de outras partes do globo, como o argentino Jorge Mario Bergoglio, atual papa Francisco.

Nascido Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini em Concesio, no norte da Itália, ele entrou para o seminário em 1916, com 18 para 19 anos. Quatro anos mais tarde, foi ordenado padre.

Segundo Kelly, era filho de uma família de posses — seu pai era um “próspero advogado” que também atuou como editor político e chegou a ser membro do parlamento.

“Tímido e de precária saúde, mas com um apetite para livros”, descreve o teólogo, sobre a juventude de Montini.

Logo após sua ordenação, acabou iniciando trabalhos na Cúria Romana, onde sua erudição era motivo de destaque.

No fim de 1954, Montini acabou nomeado arcebispo de Milão. Alguns viram esse movimento como uma tentativa de minar sua carreira, já que ele andava galgando postos importantes dentro da administração do Vaticano.

A leitura mais aceita, contudo, é de que a nomeação era uma maneira que o então papa Pio 12 (1876-1958) encontrou para dar a ele uma experiência pastoral, vista como importante para seu próprio crescimento.

Sua atuação na importante arquidiocese do norte italiano deu a ele uma grande projeção, na verdade. Kelly ressalta que Montini se “auto-intitulou ‘arcerbispo operário'” em um claro aceno às classes trabalhadoras descontentes naquele efervescente cenário em que a cidade ainda sofria as devastações da Segunda Guerra e procurava se reerguer.

Mas o epíteto de “operário”, ressalta Kelly, parecia destoar um pouco “das agora lendárias 90 caixas de livros” que o acompanharam na mudança de Roma para Milão.

Contudo, com o passar do tempo ele parece ter conquistado o apoio popular. O teólogo britânico destaca sua “imensa energia” frente aos desafios e o fato de que, em 1957, ele empreendeu uma intensa missão de visitar, ao longo de três semanas, cada uma das paróquias pertencentes à sua arquidiocese.

Importante também lembrar que parece ter sido ali em Milão que começou a brotar em Montini a sensibilidade para o diálogo interreligioso. Em 1956, ele recebeu um grupo de anglicanos, um gesto visto como bastante incomum.

A eleição como papa

 

A visibilidade de seu trabalho era tanta que, segundo consta, ele teria recebido votos no conclave de 1958 — que elegeria seu antecessor, papa João 23 (1881-1963) — mesmo sem ainda ter se tornado cardeal, ou seja, um dos candidatos naturais pela lógica eclesiástica.

A nomeação cardinalícia, aliás, viria naquele mesmo ano de 1958, no primeiro consistório de João 23.

E no conclave seguinte, justamente para suceder João 23, Montini acabaria escolhido.

Conforme tradição católica iniciada por volta do ano 1000, toda vez que um religioso é eleito para ser papa ele assume uma nova identidade. E este gesto, mais do que um preciosismo, é entendido como uma mensagem inicial: o nome escolhido implica na missão principal que aquele novo pontífice se impõe.

O argentino Jorge Bergoglio, por exemplo, teria escolhido Francisco porque seu amigo, o cardeal brasileiro Cláudio Hummes (1934-2022) teria lhe recomendado, logo após a eleição, que ele não se esquecesse dos pobres.

Montini decidiu ser chamado de Paulo. “Foi uma clara referência ao apóstolo evangelizador. E isso revela um pouco daquilo que ele gostaria que fosse seu papado e de fato foi: um papa com características de transformar a Igreja Católica, expandindo-a para o mundo”, enfatiza Moraes.

Essa internacionalização é visível até mesmo no colégio cardinalício. Segundo levantamento realizado pelo teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Junior, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o peso da Europa entre os purpurados caiu entre o conclave de sua eleição, em 1963, e o conclave seguinte, que faria seu sucessor, em 1978.

Os europeus representavam 68,7% dos eleitores. E esse peso caiu para 54%.

E as chances de um sucessor não-italiano também aumentaram bastante. Quando Montini se tornou papa, o colégio cardinalício tinha representantes de 28 países. No conclave seguinte, esse mapa contava com 48 países — um aumento de mais de 70%. (Em todo o seu pontificado, Paulo 6º criou 143 cardeais. Nenhum deles está vivo.)

“Em seis consistórios, ele remodelou consideravelmente o colégio cardinalício, acentuando o caráter universal desse colégio. É um processo em que a gente percebe que houve uma preocupação enorme de renovação”, diz Moraes.

“Não dava mais para ficar uma igreja restrita ao pensamento europeu e marcadamente italiano. Era necessário pensar de maneira mais ampla”, acrescenta.

Trata-se de um movimento interessante nas peças de xadrez que compõem o tabuleiro do poder católico. E que tem sido a tônica do atual pontificado, de Francisco, o primeiro em que europeus deixaram de ser maioria absoluta entre os purpurados.

Segundo Moraes, Francisco planta “árvores que vão dar frutos lá na frente”, exatamente como fez Montini.

O nome e a missão

 

E Paulo, o apóstolo, é reconhecido na história do cristianismo como o primeiro grande evangelizador. “Paulo 6º sabia que, como papa, seu maior trabalho seria evangelizar”, comenta Moraes.

“Levar a mensagem de Cristo e do cristianismo a todos os lugares possíveis. Ele queria uma Igreja mais atuante e quando ele se tornou papa e reabriu o concílio Vaticano 2º pudemos perceber que essa seria a tônica dele.”

“Ele assistiu à chegada do homem à Lua e mandou uma mensagem ao vivo aos astronautas”, exemplifica Domingues.

Mas naquele contexto não funcionava mais uma evangelização que prescindisse do diálogo.

“E ele percebeu e teve um grande afã, grande desejo de que a Igreja Católica pudesse finalmente falar com todos os segmentos do mundo polarizado, do mundo secularizado, onde a Igreja precisava se mobilizar para manter contemporânea sua mensagem”, acrescenta o teólogo Moraes.

“O grande legado desse papa é que ele foi um papa contemporâneo, um grande evangelizador, alguém que buscou atualizar a mensagem de Jesus Cristo para um tempo muito difícil, que foi esse tempo da segunda metade do século 20”, diz Moraes.

Para isso ele tinha também instrumentos mais acessíveis, como meios de transporte. Assim, foi o primeiro papa a viajar de avião e, o que lhe rendeu o apelido de “papa peregrino”, inaugurou a era dos papas viajantes e visitou todos os cinco continentes — um feito só repetido por João Paulo 2º (1920-2005).

Sim, ser papa no século 20 não era ficar encastelado no Vaticano.

“Não adiantava mais ficar com saudade dos tempos de glória do passado quando os papas simplesmente tinham poder constituído, falavam e todo mundo obedecia”, comenta Moraes.

“Era necessário diálogo, estar onde os problemas estavam. Por isso ele viajou muito e por isso ele tentou estabelecer contato com outras igrejas.”

“Ele foi um homem à frente do tempo”, complementa.

O vaticanista Domingues acrescenta que Paulo 6º foi o primeiro papa “a enfrentar as questões contemporâneas, os fenômenos da era moderna”.

Em suas viagens e seus documentos, ele abordou temas que vão dos desafios da mundialização — em um conceito muito próximo do que hoje chamamos de globalização — à revolução sexual — foi no tempo do seu pontificado que houve a popularização de métodos contraceptivos como a pílula e movimentos sociais como os de maio de 1968.

“Ele mostrou que a Igreja Católica estava aberta ao diálogo, sem abrir mão de suas posições e deus princípios. Ele dialogou com esse mundo efervescente e, nesse sentido, a Igreja Católica se transformou em algo mais contemporâneo”, ressalta Moraes.

Alguns gestos foram marcantes de movimento. Conforme ressalta Kelly, “ele reduziu a pompa e a circunstância do papado”. E uma das providências foi vender a tiara papal — espécie de coroa — a que tinha direito de usar desde a eleição, com o arrecadado revertido a obras sociais.

Paulo VI foi, assim, o último papa a ser coroado, como um monarca. Depois dele, nenhum outro repetiu o gesto histórico.

Domingues lembra também que Paulo 6º realizou um importante trabalho de gestão da Cúria Romana e do funcionamento da máquina eclesial. Nesse sentido, foi um reformista, que se preocupou em criar regras claras em uma instituição ainda movida mais pela tradição do que pelos protocolos.

Foi ele quem determinou que cardeais com mais de 80 deixam de ter poder de voto numa sucessão papal, por exemplo. “Ele começou a colocar limites e a criar estruturas, pensando na melhoria do funcionamento. Isso fez dele um papa muito inovador”, comenta Domingues.

Mas todo esse ímpeto reformador e, até certo ponto, progressista, acabou recebendo uma ducha de água fria com a publicação da encíclica Humanae Vitae, em julho de 1968. Especialistas acreditam que ali houve um momento de inflexão da trajetória de Montini, não pela doutrina reafirmada no documento, mas pela repercussão havida.

Abordando tópicos sensíveis, como aborto e controle de natalidade, o documento vinha sendo preparado com base em diversas consultas que o papa fazia a especialistas, das mais diversas áreas. E havia uma expectativa, sobretudo os grupos católicos mais progressistas, que ele revisasse alguns pontos nevrálgicos da doutrina.

“Era um período em que se falava muito sobre contracepção e que mudanças estavam acontecendo. As pessoas que estavam do lado mais liberal, mais progressista da Igreja, eles acharam que o papa ia fazer uma revolução nas questões de moral sexual”, conta Domingues.

“Mas ele não fez. Ele reafirmou a doutrina da Igreja praticamente dizendo que não era o momento de rever essas questões.”

Essa encíclica até hoje é um dos pilares quando há discussões, no âmbito católico, sobre defesa da vida e contracepção, por exemplo. “São os mesmos princípios, a Igreja não mudou”, afirma o vaticanista.

“Isso acabou gerando muitas críticas a Paulo 6º, de todos os lados, e ele ficou isolado”, pontua Domingues. “Ele era visto como progressista demais pela ala conservadora, e conservador demais pela ala progressista”, resume Moraes.

Na época, muito se falou que isso acabou deixando-o depressivo. “Fato é que ele parou de escrever, foi entrando na velhice, foi envelhecendo e ficando mais frágil”, diz Domingues. “E se fechou na introversão, na oração, na introspecção. Era quase como se dissesse: eu já deixei minha contribuição, agora vou só seguir aqui até o fim da vida.”

Conforme atesta Kelly, Paulo 6º ainda sentiria um intenso desgosto pelo sequestro e assassinato do ex-primeiro ministro italiano Aldo Moro (1916-1978), democrata cristão que era seu “amigo de toda a vida”. “Sua última aparição pública foi para presidir a cerimônia do funeral [de Moro]”, pontua Kelly.

“Pouco tempo depois, foi acometido de artrite e, após ter sofrido um ataque cardíaco enquanto se rezava uma missa junto à sua cama, morreu no Castelo Gandolfo em 6 de agosto [de 1978]”, descreve o teólogo, no verbete dedicado a Paulo VI em seu livro.

Em outubro de 2018, papa Francisco declarou-o santo, encerrando seu processo de canonização.

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