“PÉ QUE NÃO ANDA, NÃO DÁ TOPADA” –
Eu vinha toda faceira. Sentia-me flutuar. Absorta nos delírios das fantasias de uma mente sapeca e gestativa. A rua estava praticamente deserta. Havia poucas pessoas ao redor. No máximo, a uns 40 metros de onde eu passava, um pequeno punhado de trabalhadores advindos de suas labutas, ao fim de seus expedientes, enganchados em prosas e cervejas, no botequim da esquina. Atravessei a rua saltitando. Sentia-me feliz!
Eu sei, talvez não houvesse muito a comemorar, estávamos em meio à consumada crise econômica do país, com o dólar na maior cotação da história, suspensão dos concursos públicos, férias coletivas das principais montadoras automobilística do país, comércio derrengando… Nem me lembrem das compras, no supermercado, do início do mês. Daqueles últimos meses – com o salário congelado – eu levava a mesma quantia de dinheiro para as compras, dos suprimentos mensal de um lar. Acontecia que, a cada mês, chegava a minha casa com a metade dos mantimentos do mês anterior. Sucessivamente. Estava vendo a hora, nos meses que se sucederiam, voltar para casa só com um pacote de café e um quilo de açúcar – pois, desses eu não abriria mão.
Naquele instante, de “saltitações” pueris, lamentações e “choraminguelas” não faziam parte do meu repertório de pensamentos, soltos e abstratos. Devaneios intangíveis sobre a perfeição e eternidade da brevidade dos tempos. Desenhado em nuvens. Tatuados nas lembranças. Registros imutáveis das recordações.
Subi a calçada em um leve passar de pernas. Valsando sonhos, tal qual Ana Botafogo, Primeira Bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em suas gloriosas apresentações. Eu tinha esquecido um pequeno detalhe, as sapatilhas não me calçavam, e sim um par de sandálias novas, a lá mulheres de Atenas, que “Não têm sonhos, só têm presságios”. Deveria ter tido o tal presságio, pelo menos nesse momento. Só assim teria me livrado de uma topada colossal. Parecia que um daqueles caras, a mais de 40 metros de distância de mim, tinha me dado um cinematográfico empurrão.
Meu corpo descambava para frente. Quanto mais eu tentava equilibrar-me, pôr-me firme em pé, mais as pernas enfraqueciam e eu ameaçava beijar a lona, ou melhor, a calçada. Talvez, nessa agonia, eu deva ter percorrido uns cinco metros de pura “ostentação”. Meus passos, nada graciosos, pareciam ter saído de um baile funk.
Por pura insistência minha, tinhosa como sempre fui, não admiti estatelar-me com todo o corpo ao solo. A marmota seria muito vexatória. A essa altura da topada, eu não poderia “descer do salto”. Alinhei-me aos poucos. Acertei o passo, enchi o peito, prendi o ar. Precisava retomar a graciosidade e elegância de quem flutua nos sonhos e fantasias realizados. Teria que ser faceira ao pisar na crueza da realidade do calçamento. Aquele era o tempo de provar sabores, vencer desafios e superar a “cangueirice” de estrear um par de chinelas novas.
E os meus sonhos? A topada deu um belo capilé na quimera dos meus desejos e quereres, lembrando-me da dureza da calçada. Em sonhos, tropecei na realidade. Despertei para as coisas reais e lembrei que, mesmo em momentos de delírios, não podemos esquecer-nos de olhar por onde se anda. Como prega a máxima: “Pé que não anda, não dá topada!”
Agora, depois do desacelerar das pernas, do aprumo do corpo e do controle dos anseios do que virá, agradeço aos tropeços da vida, aos esbarrões e seus aprendizados, alertando-me, com mais observância, para a boa vivência e a boa andança. Desviando-me, nas próximas calçadas, das malquerenças da vida.
Poxa! Por essa topada eu não esperava. Como se diz por aí: “Alegria de pobre dura pouco”.
Flávia Arruda – Pedagoga e escritora, autora do livro As esquinas da minha existência, [email protected]