PEDACINHOS DO CÉU – Alberto da Hora

PEDACINHOS DO CÉU –

Quando eu era criança, na Guarita, existia em frente à nossa, uma casa onde moravam várias mulheres. Ali entravam e saíam muitos homens e eu não poderia entender por que. O motivo daquele entra-e-sai só vim saber muito tempo depois. Era, na verdade, um lugar de prostituição, uma casa de “recursos”. Nos longos dias de enfermidade – o mal que me deixou com a visão de um olho só – até recebi delas um apelido, um epiteto singelo e carinhoso, talvez para compensar a tristeza do meu estado de saúde. Minha mãe gostava daquelas “meninas”, que eram discretas e respeitadoras; muito mais do que alguns vizinhos mal educados e barulhentos que se conhecem ainda hoje.

Mas pelo menos um barulho vinha da casa. Era um som musical que eu aprendi a escutar com os ouvidos da tolerância e a paciência dos inválidos. Daquela radiola, do que eu mais gostava eram as músicas de Valdir Azevedo, o baião Delicado e os choros Brasileirinho e Pedacinhos do Céu, esse chorinho que ficou como tantos outros emblemas musicais, aprisionados nos arquivos da memória de quem prestava atenção naquelas peças que, até hoje, encantam, alegram e deleitam os espíritos que se alimentam da beleza. Os acordes iniciais do cavaquinho eram o ponto de partida para uma viagem encantadora que fazíamos com os olhos fechados e a mente aberta para um doce deleite. Pois era essa a música que mais se tocava na casa das raparigas, todos os dias, com chuva ou com sol, tendo ou não tendo freguês. Tocavam outras, mas Pedacinhos era a preferida.

Carrego nos ombros o peso das minhas irresponsabilidades e dos meus fracassos. Às vezes, dou-me ao trabalho de ajuntar para tentar remover da mente as angústias dos erros cometidos e ainda por cometer. Mas aí, recorro à lembrança dos meus anos dourados e, com avidez, procuro reunir, reviver, reconstruir, nem que seja por alguns instantes, a magia do universo juvenil, tentando, pela pureza perdida, redimir e perdoar as canalhices de adulto.

Em silêncio, pergunto pela minha infância na Guarita, pelas férias em Extremoz. Os banhos na lagoa, a chegada do trem, comer grude, sequilho, beiju, bolo preto. E ao redor da Igreja de São Miguel, caçar lagartixa depois do catecismo. Tento descobrir para onde foram as séries de domingo no Cinema São Luiz, os programas de auditório e as novelas da Rádio Poti, os ABC e América no Juvenal Lamartine, a Seleção Brasileira de 1958 – Gilmar, De Sordi e Belini; Nilton Santos, Zito e Orlando; Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo – as novenas de maio da capela de São José e a candura que me fez apaixonar-me por aqueles dois anjinhos das procissões.

E me pergunto em que mundo estarão escondidos o barbeiro Chefão, João Preto, as meninas de seu Paraense, seu Celso e Dona Júlia, seu João, seu Raimundo, seu Santino, Dona Preta, irmão Epitácio, Padre João, Seu Ladu, João Mata-Porco, Roberto Bolo Preto e Roberto Bolo Branco, Dona Marinete, a menina Leda, comadre Zefinha, a professora Lourdinha, as rainhas das festas de março, o engraxate Jackson, dona Neneza, Babica, as festas de São José, as bagunças do carnaval, o trombone de Lelé?  E o jornaleiro Cambraia, e o mendigo Azulão, e o doido Cuíca? Umberto Nunca mais vou ver os caminhões de lenha descendo a Quatro, os caga-lona jogando as toras de madeira para os garotos?

 E em que lugar no tempo foi parar a radiola das raparigas da rua João Carlos, aquela que todos os dias, com ou sem fregueses, com sol ou com chuva rodava incansavelmente tocando Pedacinhos do Céu?

 

 

 

Alberto da Hora – escritor, cordelista, músico, cantor e regente de corais

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
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