PELAS RUAS DE NATAL –
Naquela noite, com todos os mosquitos do mundo soltos lá para as bandas da Ribeira, Pedro Paulo, deitado na calçada da rua Frei Miguelinho, cochilava e acordava o tempo todo. O pesadelo se repetia quando mal fechava os olhos. Um anjo exterminador alado pairava no teto da casa e falava aquelas baboseiras que uma vez tentara fazer ele decorar um padre careta: amar a Deus sobre todas as coisas, honrar pai e mãe, não desejar a mulher do próximo, não matar, não roubar, guardar domingos e festas de guarda (que diabo isso queria dizer, que o padre não explicou ?), não fazer aquilo, não fazer aquilo outro. Em pleno sonho, o que ele queria mesmo, era fugir daquela sala imensa cheia de gente e não encontrava portas ou janelas por onde sair.
 
Naquela angústia, no meio da rua, ao redor da meia noite despertou. Acordei!- gritou. Porra, será que uma paixão é sempre assim? O que sabia do amor? Lembrou aquela música do Gonzaquinha que cantava o seu xodó “Começaria tudo outra vez se preciso fosse meu amor”. Como? Se agora ela estava com outro e lhe abandonara sem ter nem pra que. Lembrou, também, que uma tia (parece) lhe dissera que no outro dia completaria dezoito anos. O que fazer, agora? Porra, será que uma paixão seria sempre assim, repetiu. Com as mãos no queixo, pensando em acabar com tudo, imaginou a vida sem Madalena. Como viver sem ela.
 
Quando pensava nisso um nó se apertava dentro dele e começava aquela angústia insuportável. O que fazer se ela tinha lhe deixado por outro. Sem pai, nem mãe, nem casa, o estômago à míngua, a polícia sempre no seu encalço, sentia vontade de falar mal de Deus. Abria a boca e faltava o ar. Jogou fora os jornais que o cobriam e acordou João Maria ao seu lado. Acorda, vamos dar uma rolé por aí. A Ribeira, àquela hora, era como se fosse uma cidade fantasma. Armados com dois 38 roubados passaram ao lado do que foi o Grande Hotel, subiram a pé a ladeira de Marpas em frente, dobraram lá em cima à direita na ladeira da Poti.
 
Perto do bar do Lourival um casal namorando dentro dum Honda. Imagine, de madrugada. Sai do carro porra! Não atire por favor. Sai do carro, porra, vou te matar! João Maria, tocaia eles no banco de trás. Eu? Você mesmo, ou tu não sabe mais teu nome, burro? Tapa a boca deles e amarra as mãos com essa fita isolante, ou você também é cego? Tá vendo o rolo aí no chão, não? Seguiram em frente. Na Jundiaí entraram à esquerda e lá em frente no inicio da Rodrigues Alves colocaram os dois no porta-malas. Toca pra Cidade-Jardim. Por que? Ora por que, lá tem mais casa que edifício, e de repente a gente encontra uns granfas, no meio do caminho, dando bobeira, idiota. 

Olha, a casa é aquela, tá tendo uma festa. Tocaram a campainha. Ouviu-se do lado de dentro, algo como “a pizza chegou”. Alguém antes de abrir a porta pergunta: É a pizza? João Maria pensou, que porra de festa é essa feita de pizza de encomenda, e disse: É, sim. Todo mundo deitado! Vocês tão fodidos! Tem mais alguém na casa? A empregada, chama ela, também, pra cá. Ela vem apavorada, fora de controle, e gritando muito. Pedro Paulo deu uma porrada com a coronha do 38 no rosto dela. Ficou quieta, calada, e de olhos bem abertos antes de ser sumariamente executada com um tiro no meio da testa. Pra que isso? Tô cagando e hoje tô com ódio de mulher. Vamos lá, amarra todo mundo. Corta o fio do telefone fixo, se tiver, e cata tudo: celular , relógio , dinheiro , jóia, o escambau, o que der para levar. Descobre uma fronha de travesseiro por aí e põe dentro. Neca de cartão de crédito que eles só usam isso hoje e pra nós não tá com nada. Vê se tem cofre pois se não tiver dinheiro no bolso deles puxo o gatilho mais uma vez no escuro e levo mais um. Na casa não tinha cofre. Revistados os sujeitos, afanaram pouca grana, que esses caras só usam mesmo cartão de crédito e cheque, uma vez perdida. Vocês são uns bostas,viu ? Quem se mexer ou falar leva bala!
 
Todo mundo amarrado com o que tinha disponível na casa, de cinturão até fio de telefone fixo, acenderam dois baseados daqueles que vêm misturado com pó de crack pra aumentar o apetite e o barato e começaram o banquete à base de azeitona, queijo, sardinha em lata, uísque oito anos e pizza à calabresa, que esses maracatus só sabem comer isso dia de domingo à noite. Muito obrigado pela atenção, disse Pedro Paulo, ao final , meio muxoxando.
 
Saíram e se bandearam pros lados da Pororoca. No meio do caminho que vai para o aeroporto pararam em uma blitz. Uma fila enorme. Os dois gelaram. A luz dos faróis ligados, a fila enorme, ou, quem sabe talvez até a notória fúria arrecadatória estatal já amainada àquela hora, fizeram com que escapassem da triagem. Um aceno de mão sinalizou para eles prosseguirem viagem. Hoje é meu dia de sorte, João, já pensou eu soprando o bafômetro e sem documento? Gargalharam os dois. 

No deserto da pororoca, os faróis ligados como única alternativa de iluminação, desentulharam os dois do porta-malas. E agora, que vamos fazer? É a tua vez, mano. Minha, não, a tua de novo, cagão. Decide. Tudo bem. Descola a fita da boca deles. Por favor, João Maria, deixa a gente viver, pelo amor de Deus! Ah, mas não é que vocês sabem meu nome? Após o tiro, o cara balançou de um lado para o outro, um movimento tênue e parado, feito o que fazem os barcos ancorados. Depois, foi a vez dela, que se moveu durante o impacto como se quisesse mudar de lado na cama. Eu não te disse que bala dum-dum é perfeita? Retiraram gasolina do tanque e tocaram fogo nos dois. Reacenderam a piúba do baseado e ficaram olhando pro breu do céu. Vamos embora que o churrasco começou a feder, rapá! Ninguém vai nem reconhecer esses dois cotocos queimados, amanhã.
 
Sem pais , sem mães , sem referências , sempre a mercê de más companhias, mas com o peito lavado e barriga cheia voltaram pela BR 101. Após a rua Apodi pegaram de novo a Deodoro, desceram a ladeira, quebraram à direita noutra ladeira íngreme que dá pro estádio João Câmara, perto da antiga estação da estrada de ferro e largaram o Honda por lá. Pedro Paulo cantarolava baixinho: “A chama em meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão …” Foi a vez de João Maria. Além de corno, cantor, caralho ? Sei não! Os dois riram e seguiram em frente a pé na direção do Potengi.
 
José Delfino – Médico, músico e poeta.
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