Equívocos no Atlas da Violência –

Três anos após aprovação do Estatuto do Desarmamento, homicídios voltaram a crescer o Atlas da Violência é um importante documento elaborado pelo Ipea, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A recente edição de 2020 apresenta uma gama de dados sobre a criminalidade violenta abrangendo, na sua maioria, dados referentes ao período de 2008 a 2018. A despeito de sua importância, notamos alguns equívocos metodológicos. Vamos a eles.

A análise do país como um todo é de uma série histórica longa, de quase 40 anos (1980-2018). Contudo, quando o Atlas parte para a análise regional (unidades federativas), os dados são apenas entre 2008 e 2018 (dez anos). Isso atrapalha a avaliação de algumas políticas públicas implantadas antes de 2008. A exemplo do Estatuto do Desarmamento, criado em 2003.

O Atlas repete o mantra de haver uma relação de causalidade entre mais armas de fogo e maior número de homicídios. Confunde correlação, que é o nível de associação entre duas variáveis, com a relação causal, em que um determinado estado de coisa (efeito) é consequência de outro (causa). De fato, após a aprovação da Lei Federal de nº 10.826/2003, conhecida popularmente como Estatuto do Desarmamento (ED), o número de homicídios começou a decair. No entanto, a partir de 2006, os homicídios voltaram a crescer nacionalmente. Quando os dados são desagregados regionalmente, a tese da causalidade entre mais armas e, consequentemente, mais homicídios mostra-se ainda mais débil. Mesmo quando o número de mortos caiu no Sudeste, logo após o ED, os vitimados subiram no Nordeste.

Eis os números: Os homicídios subiram drasticamente em São Paulo entre 1980 (2.384 mortes) e 1999 (15.748). O incremento percentual foi de 590%. Entre 1999-2003, período anterior ao ED, a queda de vitimados foi de 11,8%. O Atlas não destacou devidamente essa redução, dando a entender que a queda no número de homicídios teria sido por causa do ED.

Similar equívoco aconteceu em virtude de uma análise pouco acurada sobre a dinâmica dos homicídios no Nordeste. O número de mortes na região aumentou antes da implantação do ED. A cifra de homicídios saltou de 6.931 óbitos em 1994 para 22.019, em 2003, correspondendo a uma variação percentual de 71%. E a do período de 2004 a 2013 atingiu a casa de 90%. Em números absolutos, de 11.581 (1994) para 22.019 (2013). Portanto, o período posterior ao ED foi mais violento, tanto em termos percentuais como absolutos, no Nordeste do que antes do ED.

Ante a deterioração do desempenho das instituições responsáveis pela segurança física e patrimonial dos brasileiros, em especial dos que vivem em zonas rurais, explodiu o número de registro de armas de fogo após o ED. Dados da Polícia Federal e do Ipea, para os anos de 2004/2015, atestam um salto na ordem de 1.105% na variação de armas de fogo registradas no país. Embora esse salto tenha sido espetacular, os homicídios praticados por arma de fogo tiveram um aumento, no mesmo período, de 22,3%. Em termos absolutos, foram registradas 3.055 armas em 2004 e 36.807 em 2015. E os homicídios por arma de fogo saltaram de 34.187, em 2004, para 41.817, em 2015. Como explicar a variação no desvio padrão entre tais dados? Em outras palavras: o que explica a diferença no grau de mudança percentual entre os conjuntos de dados?

Como isso fosse pouco, o DataSUS apontou, entre 2017 e 2018, uma queda no total de homicídios (de 63.748 para 55.914), ou 12,29%. A queda ainda foi maior quando são analisadas as mortes intencionais por armas de fogo (-13,33%). Dados preliminares para 2019 apontam uma queda ainda maior. Os dados apresentados não sustentam a afirmação do Atlas de que, quanto mais armas em circulação, maior o número de homicídios. Muito pelo contrário.

 

 

 

*Matéria escrita para edição do Jorna O Globo 06/10/2020, escrita por José Maria Jr e Jorge Zaverucha 

*José Maria Jr é professor da Universidade Federal de Campina Grande, e Jorge Zaverucha é professor da Universidade Federal de Pernambuco

 

 

Jorge Zaverucha – Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é professor titular do departamento de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco. Autor do livro “FHC, Forças Armadas e Polícia – Entre o Autoritarismo e a Democracia” (2005, ed. Record)

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