Números vs. Ideologia –

O Estatuto do Desarmamento (ED) morreu. Só falta o Congresso Nacional e/ou Bolsonaro expedirem o convite formal para o seu sepultamento. O ED nasceu de uma ideia nobre calcada em uma premissa inexata. Seus mentores acreditavam que a redução do estoque de armas causaria queda linear no número de homicídios. Esta causação, contudo, não é cientificamente garantida. Ou seja, pode ou não se verificar pois dependerá de uma série de variáveis existentes e das probabilidades de sua concretização. A análise não pode ser determinística. Os apoiadores do ED, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Atlas da Violência, teimam em ignorar esta realidade. Pena.

Nos dois primeiros anos de vigência do ED houve uma diminuição no número de armas em circulação seguida de arrefecimento das mortes por armas de fogo. Início promissor. Mas, a árida realidade conspirou contra o ED. A sensação de insegurança cresceu de tal modo que levou a uma explosão da violência, em especial, nos estados nordestinos que possuem as maiores taxas de homicídios do país. Já que o Estado teima em falhar no provimento da segurança pública, o brasileiro, em especial o residente no campo, passou a fazer uso de subterfúgios legais para comprar, de modo crescente, armas de fogo. Através da chamada categoria dos “CACs” (colecionadores, atiradores e caçadores) cresceu a compra em dez vezes entre 2014, data da regulamentação do ED, e 2017 a aquisição de novas armas de fogo. Só em 2017 foram vendidas 33.031 novas armas. Com a chegada de Bolsonaro ao poder, tais subterfúgios não foram mais necessários, pois o governo federal incentivou a compra de armas por partes do cidadão brasileiro.

Resultou no aumento do estoque de armas, concomitantemente, com a diminuição do número de homicídios. Ao contrário do que previa o ED. E nem estou levando em conta o estoque de armas ilegais existentes. Nem nas 17 mil armas desviadas de empresas de segurança privadas no Rio de Janeiro entre 2005-2015. Imaginem o montante total computando-se os desvios ocorridos em outros estados.

A relação entre armas legais e homicídio é cientificamente inconclusiva. Duas máximas equivocadas vêm sendo repetidas. A primeira diz que “menos armas causam menos homicídios”. A segunda vai em sentido oposto: “mais armas causam menos mortes”. Não há universalidade em ambas afirmações. Ou seja, dependendo do país, de contextos subnacionais, do tempo e da cultura etc. ambas as afirmativas ganham ou deixam de granjear guarida. Por exemplo, o DATASUS apontou, entre 2017 e 2018, uma queda no total de homicídios (63.748 x 55.914), ou seja, 12,29% A queda ainda foi maior quando são analisadas as mortes intencionais por armas de fogo (- 13,33%). Dados preliminares para 2019, apontam para uma queda ainda maior mesmo como o aumento na circulação de armas no Brasil. Já no Nordeste do país houve uma explosão no número de homicídios como já mostrou o professor José Maria Nóbrega Jr.

Por sua vez, a Suíça possui 24 armas por 100 mil habitantes e a Nova Zelândia, 30. Mesmo com menos armas, a Suíça registra cinco vezes mais homicídios do que a Nova Zelândia. Por sua vez, a Alemanha que apresenta cerca de 30 armas por 100 habitantes detém uma taxa de homicídio que é um terço da Bélgica que possui apenas 17 armas por 100 habitantes. Menos armas mais mortes no primeiro caso. Mais armas menos mortes no segundo.

As duas máximas acima citadas apresentam redação equivocada. Usam o verbo causar como se a explicação para o cometimento de homicídios não fosse multifatorial. Portanto, não há (salvo em condições excepcionalíssimas) uma causalidade entre maior/menor número de armas e homicídios. O que pode haver é uma correlação entre homicídios e fatores indutores do crime.

O que faz crescer ou diminuir o número de homicídios é policiamento ineficiente, impunidade (judiciário e sistema prisional), existência do crime organizado, capital social e ausência de fatores socioeconômicos, muito mais do que o maior ou menor estoque de armas. Sem instituições que prendam assassinos e os mantenham em cárcere, sem políticas de prevenção que gerem mais qualidade de vida, restringir ou aumentar o acesso às armas não resultará, necessariamente, em menos crimes. Ou seja, o controle de arma de fogo aparece como uma variável que só terá impacto redutivo nos homicídios se outros fatores forem devidamente controlados. Menos ou mais armas não são causa para menos ou mais crimes.

 

 

 

 

Jorge Zaverucha – Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é professor titular do departamento de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco. Autor do livro “FHC, Forças Armadas e Polícia – Entre o Autoritarismo e a Democracia” (2005, ed. Record)

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