Vandalismo sim. Golpe, não
Trump perdeu o controle sobre os grupos radicais
24/01/2021 – O Globo
Steven Levitsky, coautor do renomado livro “Como as democracias morrem”, classificou como autogolpe o ocorrido no Capitólio. Discordo. Trump já tentara que os delegados republicanos não reconhecessem a vitória de Biden em seus estados e pressionou o secretário de Estado da Geórgia para lhe conseguir 11 mil votos necessários para virar o resultado. A marcha rumo ao Capitólio era sua última cartada. Não planejou intencionalmente um golpe.
Em discurso matutino, Trump repetiu a surrada cantilena de que a eleição fora fraudada, embora sua equipe jurídica tenha perdido mais de 50 ações de impugnação. Disse ter várias provas de fraude, mas não apresentou nada de concreto. Revelou ser um mau perdedor e sabotou o jogo democrático até o seu final.
No Parque Ellipse, fez um discurso dúbio. Ora de incitamento (“se você não lutar como o diabo, não terá mais um país”; é preciso “tomarmos de volta nosso país”). Ora de apaziguamento: vamos ao Capitólio “festejar nossos bravos senadores e congressistas”, e isto será feito de um modo “pacífico”, e a multidão irá “patrioticamente fazer com que nossas vozes sejam ouvidas”, disse Trump. Em seguida, conclama seus seguidores a marcharem pela Avenida Pensilvânia desde a Casa Branca rumo ao Capitólio.
Ao contrário do prometido, Trump não acompanhou seus correligionários pela famosa avenida. Ficou na Casa Branca assistindo aos manifestantes chegarem ao Capitólio sem um líder a guiá-los. Trump perdeu o controle sobre os grupos radicais. Ao entrarem no Congresso, não sabiam o que fazer politicamente, a não ser depredar o prédio. Trump brincou com fogo e terminou com queimaduras de terceiro grau. O epíteto de golpista lhe foi rapidamente impingido pela oposição. Trump será eternamente lembrado por seu erro de cálculo político. Perdeu as condições de continuar sendo presidente do país.
Registre-se a atuação do vice-presidente, Mike Pence, e do líder da maioria republicana no Senado, Mitch McConnell. Cresceram no momento de crise. O senador alertou que mudar o resultado da eleição poderia danificar a República para sempre. Pence, por sua vez, na qualidade de presidente do Senado, não se submeteu à pressão de
Trump e certificou a vitória de Biden. Caso não fizesse isso, estaria aberta a possibilidade de uma guerra civil.
Engana-se quem pensar que todo o imbróglio se resume à personalidade tóxica de Trump. Mesmo depois da invasão, 139 deputados e 8 senadores republicanos votaram contra a certificação de Biden. Trump é a ponta de um iceberg que representa a insatisfação de significativa parte da população americana tanto com sua classe política quanto com a integridade de seu sistema eleitoral. As questões vitais estão longe de ter sido resolvidas. Resta saber se os moderados de ambos os partidos conseguirão reerguer o centro político do país.
Jorge Zaverucha – Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é professor titular do departamento de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco