CONFLITO NO ORIENTE MÉDIO –

Em 1962, Thomas Kuhn publicou o livro intitulado “The Structure of Scientific Revolution” (“A estrutura das revoluções científicas”). Fez uma profunda crítica ao modo acadêmico de procura da verdade científica nas ciências sociais. Sua análise foi estendida às ciências sociais. Segundo Kuhn, o cientista é treinado a perceber o mundo através de determinada moldura de conceitos inter-relacionados que ele batizou de paradigma. O paradigma não apenas define a interpretação que um cientista dá aos fatos, como decide quais fatos estão sujeitos a ser interpretados.

O problema é que os cientistas costumam examinar apenas os “fatos” que se amoldam ao paradigma dominante. Os “fatos” que não se ajustam a esse paradigma são inteiramente negligenciados. Frequentemente, isso é fruto da ignorância humana, mas, às vezes, é feito de forma oportunista ou de má-fé, no sentido de manter as “verdades” que alavancam a carreira de determinados grupos de pesquisadores/jornalistas. Ou seja, tais “verdades” facilitam a obtenção de financiamento para pesquisas, promoções nas carreiras etc. Uma montanha de fatos pode ser trazida à luz, mas não fará com que eles mudem de opinião a respeito do mundo. São prisioneiros de suas próprias ontologias e de seus instrumentos epistemológicos. Kuhn alerta para a possibilidade de que uma geração inteira tenha de passar para que, somente então, a comunidade científica aceite a existência de um novo paradigma.

Na análise sobre o conflito atual, há um paradigma que se tornou dominante. Procura-se explicar uma liça tão complexa sob o prisma de um paradigma reducionista. Que conta com o apoio crescente de acadêmicos e partidos políticos, em geral de linhagem marxista. Há uma curiosa aliança entre setores de uma esquerda dita progressista com o reacionário fundamentalismo islâmico.

Nesta guerra em Gaza, a quarta desde 2006, o reducionismo ficou claro. Enfatiza-se uma luta que seria entre o opressor e o indefenso. Surge o conceito de reação desproporcional de Israel mercê da quantidade de vítimas do lado palestino. Como se um placar de mortos pudesse decidir quem é o culpado. Mais civis alemães morreram do que entre os aliados na Segunda Guerra Mundial, e ninguém diz que os nazistas tinham razão. Contudo, com Israel o critério é outro.

Quando o conhecimento sobre os fatos é limitado, a opinião pública pode ser moldada pelo lado que almeja gerar símbolos mais poderosos. Nada mais impactante e angustiante do que ver imagens de crianças mortas. Fatos não falam por si, e o entendimento deles ocorrerá dentro tanto de um contexto histórico como de um arcabouço teórico. O critério para definir uma reação proporcional deve levar em conta o tamanho da ameaça, e não apenas a quantidade de vítimas.

Dos 230 palestinos mortos, Israel diz que 160 eram terroristas. Alguns deles mortos por um terço dos misseis caídos no próprio território de Gaza. Mil bombas foram jogadas em Gaza, e morreram 60 pessoas. Tal montante é novidade na história de conflitos assimétricos, em especial contra um inimigo que se esconde entre a população civil. Isto não isenta Israel de erros. É preciso, todavia, observar a floresta, e não apenas algumas árvores. Ressalte-se que o número de mortos palestinos aumentará à medida que os escombros forem revirados. Contudo, será difícil distinguir entre terroristas e civis inocentes.

O termo sionista passou a ser um modo de retratar negativamente um determinado grupo. Como antevira Martin Luther King, o antissionismo é o novo disfarce do antissemitismo. O Hamas comete duplo crime de guerra: atira de áreas civis mirando matar, indiscriminadamente, civis. Um massacre só não ocorreu — cerca de quatro mil mísseis foram disparados — pois Israel desenvolveu um sofisticado sistema de defesa antiaérea que foi, parcialmente, burlado mercê da engenhosidade militar do Hamas. No entanto, Israel é acusado de genocídio. Embora seja Israel que forneça água e eletricidade para Gaza, mas não o Egito, que também faz fronteira com o enclave. E é pela fronteira israelense que passa a maior parte da ajuda humanitária para os habitantes de Gaza.

O Hamas em sua Carta fundamentalista islâmica diz almejar destruir Israel. Não há lugar para judeus nem cristãos viverem como cidadãos de primeira categoria em território islâmico. O Islã fundamentalista percebe tanto o judaísmo quanto o cristianismo com sendo din batal (falsa religião), em vez de din hak (religião verdadeira). O Hamas foi eleito pelos palestinos para, em 2006, governar a Faixa de Gaza. Em julho de 2007, estourou a Batalha de Gaza, que redundou na expulsão a bala da organização Fatah e na morte de 600 palestinos. Este conflito intestino é conhecido por Wakseh, que significa ruína oriunda de autoflagelação. Em represália, o presidente palestino, Mahmoud Abbas, retirou os representantes do Hamas do governo da Autoridade Nacional Palestina. Um dos motivos do ataque do Hamas a Israel foi enfraquecer o poder da AP e tentar ganhar as próximas eleições na Cisjordânia.

Israel vem sendo acusado de praticar o apartheid. Na África do Sul, os negros lutaram para mudar o regime racista existente. Não me consta que Mandela tenha propugnado a extinção da África do Sul. A população palestina cristã que mais cresce no Oriente Médio encontra-se em Israel. Foi um juiz árabe da Suprema Corte que condenou à prisão o ex-presidente Moshe Katsav.

Israel é, também, acusado de ser uma criação do colonialismo europeu. Por esta régua, o mesmo pode ser dito sobre Jordânia, Síria e Líbano. A Jordânia, por sinal, ocupa 80% da Palestina histórica controlada pelos britânicos. Setenta por cento da população jordaniana são compostos por palestinos. Estes quiseram tomar o poder e foram, em setembro de 1970, dizimados pelo Exército jordaniano no episódio conhecido como Setembro Negro.

Por outro lado, cresce a força da direita religiosa e racista em Israel. Pela primeira vez, alguns deputados deste grupo conseguiram ser eleitos para o Parlamento. Radicalismo religioso de um lado influencia o radicalismo religioso de outro. O que me faz lembrar Blaise Pascal quando escreveu que “os seres humanos nunca praticam o mal de maneira completa e feliz como quando o fazem por convicção religiosa.”

 

 

 

 

Publicado originalmente 01/06/2021 – O GLOBO

 

 

 

 

Jorge Zaverucha – Mestre em Ciência Politica pela Universidade Hebraica de Jerusalém, Doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago; Professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFPE

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