1- O risco do STF para o Rio

Alguns partidos estão procurando judicializar questões políticas sempre que podem. Isto não é sadio para a democracia além de acarretar resultados perigosos. O STF gosta deste protagonismo e se mete em searas das quais de nada entende.

Peguemos o recente caso de disputa pelo domínio do morro de São Carlos no Rio de Janeiro. Partidos de esquerda irritados com a mortes de inocentes em incursões policiais, resolveram ir até o Supremo. Pediram que a polícia não mais subisse nos morros do Rio de Janeiro. Ora, maus profissionais existem em qualquer atividade. Deveriam propor que houvesse um melhor treinamento policial em casos de conflitos urbanos feitos, especialmente, em situações de difícil acesso.

Estive no morro da Rocinha para entender o que é patrulhar nesta região. Tomei um susto. Na entrada, jovens em cima das lajes fumando maconha e armados servindo de observadores dos que adentram o “seu” território. Do alto é possível perceber a chegada de tropas policiais. As vielas lembram as de Gaza. Há saídas camufladas das casas que dão nestas ruas estreitas e permitem criar armadilhas. E, consequentemente, fuzilar policiais.

O ministro Fachin por acaso já saiu de sua torre de marfim para conhecer a realidade nos morros do Rio de Janeiro? O que ele entende de segurança pública? Nada. No entanto, se arvorou em proibir a entrada de polícias no morro salvo em ocasiões excepcionais. Sem definir o que vem a ser excepcionalidade. Achando pouco proibiu o sobrevoo de helicópteros. Estes voos permitem localizar o inimigo e abreviar o confronto nos morros.

Na operação da tomada de São Carlos, a Polícia Civil disse ter informações de sua inteligência sobre a tentativa de uma facção tomar o território da outra. Mas, segundo o delegado, tais ações preventivas não se enquadrariam no conceito de excepcionalidade. Bateu “cabeça” com a visão da PM que se disse pronta para tomar o morro. Instalou-se a insegurança jurídica.

Some-se a isto o fato de Witzel ter acabado com a Secretaria de Segurança Pública que, mesmo com suas vicissitudes, conseguia evitar maiores “ruídos” entre as polícias. Por sinal, a existência de duas polícias, uma civil e outra militar, fazendo o ciclo parcial de policiamento em um mesmo território é, salvo engano, uma invenção brasileira. Uma faz o policiamento ostensivo e a outra investiga. Arranjo institucional da pior qualidade: é mais caro e menos eficiente.

2- Lei de Segurança Nacional e a semidemocracia brasileira. Uso de entulho autoritário, que já foi pontual, agora é corriqueiro

Jorge Zaverucha- 01/09/20 (Folha de S. Paulo)

A Lei de Segurança Nacional (LSN) é a formalização jurídica dos princípios da Doutrina de Segurança Nacional. Doutrina esta que se desenvolveu no âmbito da Guerra Fria e do regime militar (1964-1985). A última versão da LSN é de 14 de dezembro de 1983 (lei nº 7.170), aprovada nos estertores do governo do general Figueiredo. A ótica dessa doutrina era dirigida para o combate do inimigo interno. Com a transição para a democracia, tal lei foi abolida por outros países do Cone Sul —ao contrário do Brasil. E, para piorar, esse “entulho autoritário” vem sendo cada vez mais utilizado.

A LSN, durante o regime autoritário, funcionou como uma espécie de apêndice do Código Penal Militar (CPM) no sentido de que os que a violassem seriam julgados pelo Superior Tribunal Militar. A Constituição de 1988 apresentou a boa novidade de considerar crimes militares somente aqueles que estivessem contemplados pelo CPM. Isso foi um avanço, pois os crimes contra a segurança pública passaram a ser apreciados pela jurisdição ordinária em vez da jurisdição militar.

Na prática, todavia, reina a ambiguidade. O artigo 109, inciso V, da Constituição diz que compete aos juízes federais processar e julgar crimes políticos. Contudo, não há no Brasil legislação sobre crimes políticos. Diante disso, a LSN termina cobrindo os crimes políticos. Em maio de 1993, por exemplo, quatro separatistas foram indiciados pela LSN, sob a alegação de pregarem a criação de um novo país no Sul do Brasil, e deveriam ser julgados por corte militar. Em democracias sólidas, civis não são julgados por tribunais militares.

Por conta de indiciamento de membros do MST na LSN, durante o governo Fernando Henrique Cardoso foram apresentadas no Congresso Nacional quatro propostas de revogação dessa lei. Duas no Senado, por José Eduardo Dutra e Roberto Freire, e duas na Câmara, por José Genoino e Milton Temer. Em seguida, FHC nomeou uma comissão especial encarregada de transformar a LSN em Lei de Defesa do Estado Democrático. O projeto foi concluído, em dezembro de 2000, mas não se transformou em lei.

O fato é que o Estado brasileiro continuou sem possuir uma lei que regule democraticamente o uso dos instrumentos de defesa da ordem. Posteriormente, o então ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, enviou ao Palácio do Planalto anteprojeto de revogação da LSN. Esse impulso renovador foi arrefecido com a saída do mesmo do governo. Enquanto FHC decidia o que fazer com o anteprojeto, a Comissão de Constituição e Justiça, em 20 de novembro de 2002, aprovou por unanimidade projeto dos deputados José Genoino e Milton Temer que revogava a LSN. O projeto, todavia, nunca foi levado ao plenário.

Hoje há um retrocesso no uso da LSN. O que outrora era pontual passou a ser corriqueiro. A começar pelo Supremo Tribunal Federal, que prendeu, com base na LSN, uma ativista e outros cinco membros do grupo “300”. Em seguida, o STF usou desse mesmo diploma legal para apurar protestos nos quais os manifestantes pediram a volta do AI-5 e o fechamento do Congresso e desta corte.

O Ministério Público Federal contribuiu para esse retrocesso, pois o esfaqueador de Jair Bolsonaro foi enquadrado na LSN. Já o ministro da Justiça, André Mendonça, solicitou que dois jornalistas, por críticas ao presidente da República, sejam investigados tendo por base a LSN. Afora a ameaça do general da ativa Eduardo Pazuello, de enquadrar na LSN quem vazar informações discutidas no âmbito interno do Ministério da Saúde. Supõe-se que o ministro interino fez uma confusão entre o que é assunto de Estado e o que é questão de segurança nacional.

A situação vigente atesta que várias instituições não estão funcionando a contento em nossa semidemocracia. Por isso mesmo, os conflitos continuam a serem dirimidos, com cada vez mais frequência, por uma lei que é resquício do regime militar. Quando este entulho autoritário será revogado?

 

 

 

 

Jorge Zaverucha – Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é professor titular do departamento de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco. Autor do livro “FHC, Forças Armadas e Polícia – Entre o Autoritarismo e a Democracia” (2005, ed. Record)

 

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