Indústria automotiva: sinais econômicos de derrapagem I –
O passado e o futuro nunca estiveram tão presentes. Aqui me refiro à indústria automotiva nacional, que nesta semana foi impactada com o súbito anúncio da Ford em fechar suas três plantas industriais. Entre o saudosismo romântico do passado e o pragmatismo econômico do futuro, há um enorme fosso que precisa ser explorado, caso se queira mesmo entender o sentido da Ford ter “engatado a ré” e desistido do Brasil.
Inicio a partida da primeira parte da análise. Meu “plano de condução” para entender o fato é direto e simples: debrear na referência daquele passado saudoso e acelerar na percepção da falta de estratégias privadas e públicas. Menos História, com relação aos registros de marcos econômicos importantes gerados pela indústria automotiva. Mais Gestão, com relação ao questionamento das ações que têm dispensado a visão de futuro, sobretudo, nesse caso da Ford.
Não há como deixar de se relevar o quão foi significativo seu papel empresarial, no que se possa definir como o modelo de industrialização adotado pelo Brasil. Derivada de uma decisão que partiu do próprio Henry Ford, em 1919, a instalação da primeira indústria de automóveis, a partir de uma modesta linha de montagem no centro de São Paulo, foi uma realização de significado histórico e econômico. Dessa linha saíram os primeiros “modelos T”, abrasileirados pelo sugestivo nome “Ford Bigode”, saudosos exemplares de uma utopia nacional que passou a ser real, capaz de mexer com o inconsciente consumista dos brasileiros. Afinal, ter a posse de um carro e usufruir do prazer em conduzi-lo passou a ser uma espécie de exercício lúdico, traduzido ao longo do tempo por desejos renovados de modelos e mais modelos.
Do marco dessa história, na qual a Ford se revelou pioneira, o passo para a consagração de uma indústria de referência seria inevitável. A virada econômica expressa pela transição do modelo agrário-exportador para a industrialização substitutiva de importações, enquanto processo natural da nossa dinâmica capitalista, favoreceu a escolha do segmento automobilístico como estratégico, num exercício de parceria amistosa entre os agentes público e privado. Já a partir da segunda metade da década de 50, um cabedal de operações fiscais e creditícias garantiu o suporte necessário à atração dos investimentos para o setor. Tudo em nome de um paradigma de desenvolvimento, no qual o mantra da geração de empregos foi toado como a maior das contrapartidas.
A travessia do fosso que aqui criei no texto bem que me exigiria mais detalhes. Porém, serei mais objetivo para ir direto ao ponto. Ou seja, quero estabelecer como um pressuposto básico da decisão de cada indústria automotiva em investir no Brasil a estratégia pública de conceder benefícios os mais diferenciados, entre incentivos fiscais, operações de crédito e até subsídios. Assim, todo esforço nessa direção sempre valeu a pena, por conta da captação dos investimentos e garantia dos empregos. Também pela ordem de grandeza do mercado consumidor por meio de decisões de política econômica que pudessem facilitar o consumo dos veículos. Criou-se, enfim, um mito de admirável valor econômico, fortalecido por uma concepção estratégica e harmônica entre entes públicos e privados. Mesmo à mercê de um evidente protecionismo, espelhado em dezenas de bilhões de reais concedidos por meio de incentivos fiscais (só nas duas últimas décadas), o setor automotivo tem derrapado no seu mercado competitivo, que foi capaz de instalar um parque industrial para produzir 5 milhões de veículos/ano, o dobro da necessidade atual.
No próxima coluna irei detalhar melhor essa situação.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco
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