OS “NOVOS POBRES”: A PRIMEIRA DIMENSÃO DO REALISMO DA CRISE –
Na coluna anterior, evidenciei minha preocupação com o recuo de certas conquistas sociais. Isso tem sido um fenômeno constatável nas últimas duas décadas, embora tenha contado com uma piora mais acentuada devido à pandemia. Assim, o que chamei de “esperança do avesso” ficou no saudosismo daquele período de maior euforia, quando um sintoma de melhoria distributiva apontava para outra direção. Ou seja, em vez da surpresa com os indicativos dos “novos pobres” de hoje, o crédito da melhor recordação esteve numa mobilidade social que chegou a registrar os “novos ricos” de ontem. Assim, o tecido social que resistiu até agora ficou desconfigurado.
Antes de relevar duas das consequências sociais dessa crise sanitária, penso ser vital destacar o delicado papel do setor público, no que tange à urgência da efetivação dos gastos associados. Mais importante que reconhecer o óbvio da fragilidade fiscal (que o diga a reforma tributária se encontrar em letargia no Congresso há um ano), é ter que tolerar a ineficiência operacional pela demora da restauração do auxílio aos desassistidos, bem como, a ineficácia propositiva que gerou a LOA recém-aprovada.
Sobre a “operação restauro” do programa emergencial, foram perdidos três meses por resistência e negligência, quando já se enxergava o repique da pandemia para este mesmo trimestre. Não se valorizou o ganho de escala que se teria com o procedimento automático de realização, da mesma maneira com que os beneficiários foram reduzidos em cerca de 1/3 e os valores a serem pagos bem minimizados. Tão ou mais preocupante que isso foi assistir ao embate estéril entre o Congresso e o Ministério da Economia em torno de um orçamento que, processado num atraso negligente, fez jus à condição de ser uma peça de ficção. A subestimação das despesas obrigatórias – que serão inevitável e compulsoriamente honradas – para fazer valer uma “manobra de intenção eleitoral”, se não configurar uma “pedalada disfarçada” sob risco político, pode ser vista como uma “maquiagem contábil” sob viés técnico. Assim, a LOA se transformou num “cabo eleitoral” pleno, em total dessintonia com o inóspito ambiente da crise.
Um vetor catalisador dessa pressão é o desemprego. Se a instabilidade econômica era um dado antes da pandemia, ficou mais claro o quanto essa crise sanitária trouxe de efeitos na geração e sustentação dos empregos, formais ou informais. Nesse sentido, é válido destacar o quanto é difícil se fazer considerações sobre a extensão do mercado de trabalho, à mercê dos indicadores difundidos pelos geradores das informações. As pesquisas têm metodologias sérias e consistentes, mas exigem cautela nas interpretações.
Falo isso por conta das recentes revelações antagônicas do CAGED e IBGE, com base em janeiro/21 (mês e trimestre). O primeiro, trazendo a boa informação da geração de 410 mil postos de trabalho. O segundo, indicando preocupação com a maior taxa de desemprego para o período (14,2%), aqui considerada desde a nova metodologia (2012).
São situações distintas. Por um lado, um olhar dirigido à formalidade com base nos dados do CAGED, algo que representa 1/3 do mercado. Por outro, com base nos dados do IBGE, inspirados na PNAD Contínua, um olhar que considera o conjunto da população em idade ativa. Aqui, além dos formais, incluem-se autônomos, informais, subutilizados, desocupados e desalentados. Diante disso, o certo é que para se contar com uma visão imediata mais consistente e mirar para uma análise prospectiva, faz-se necessário se desagregar os dados e daí confrontá-los para aferir a consistência das séries.
Por fim, outra face traumática dos “novos pobres” está na escalada da fome. Essa vergonha pode ser escrita como uma situação inaceitável em pleno século XXI, embora se tenham outras desditas, como cidadãos brasileiros com renda média inferior a R$ 10/dia e sem acesso ao saneamento básico. No entanto, vê-los em situação de fome e sem políticas que lhes tragam o mínimo de acesso aos alimentos, isso representa um real retrocesso. A fome é indigna, tem pressa e exige compromisso solidário.
Cabe uma luz kafkiana: “a solidariedade é o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana”. Hora de exercitá-la.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco