AS LIÇÕES DE UM BEIJA-FLOR* –
Quero crer que eu e muitos dos quase 8 bilhões de terráqueos sequer sonharam com esse mundo pelo avesso. Se algum devaneio a esse respeito se deu por algum momento, penso que ficou fora de qualquer radar. Do meu, com certeza.
Nesses tempos difíceis de pandemia, além do necessário recolhimento, o que coube também foi exercitar o “alongamento mental”, formalmente chamado de reflexões. Nessa prática de vida, a combinação resultante do parar e pensar, se não for original na sua essência, pode ser surpreendente nas atitudes. A conferir.
Bem, aqui em casa, entre o parar para pensar e o decidir por fazer, apostou-se em trazer a natureza para mais próximo do seio familiar. Por mais que seja uma escolha de vida, sabe-se bem como são as reais circunstâncias de um cotidiano frenético: vida urbana agitada, espaço contido dentro de um apartamento e, em cima disso, o próprio peso de um isolamento involuntário estabelecido pelos protocolos da pandemia.
Decisão tomada e ação providenciada. Numa varanda menor da sala, ficou combinado que o espaço seria ocupado por plantas e daí se optou por ostentar algumas caqueiras. Nisso, a força da vida revelou seus traquejos. Nos primeiros sinais do verde chegaram alguns pássaros de tipos e cores diferentes. Por certo, vislumbrados com a presença de uma natureza, agora saudada pelos seus cantos afinados.
Justo pelo desejo de trazê-los para compartilhar ainda mais o espaço, uma decisão por instalar bebedouros revelou uma outra face da alegria de viver dos pássaros – contar com a água como elemento de vida ali ao alcance. Eis o estímulo especial que lhes faltavam para dar mais vida ao ambiente, pela suas presenças e pelo estrilar dos seus cantos. Como toque final, uma sutil pitada de ração adocicada.
Nada é mais representativo para esses minúsculos seres que contar com a água por perto, a um simples bater asas. Parece não ser segredo para os pássaros que a água é sinal de sobrevivência, razão maior para tratá-la como uma conquista. Afinal, assim como ensina o próprio curso da água, um autêntico vencedor não se rende aos obstáculos, pois o instinto da sabedoria revela que o desafio está na capacidade de contorná-los. E nisso os pássaros são mestres, pois percebem que o alvo da água e o limite do tempo são elementos implacáveis, que trazem para eles novos horizontes.
Entre distintas espécies e cores, somente um deles chamou muita atenção: um audacioso beija-flor. Permitam-me essa qualificação com certa ênfase. Quero realçar que aquela pequena criatura da natureza, que mede menos que um dedo indicador e pesa ínfimos dois gramas, traz consigo uma força ímpar. Definitivamente, ele assumiu o pedaço e demarcou os limites da sua territorialidade. Qualquer um outro, da espécie ou não, menor ou maior, submete-se à sua condição guardiã ou vontade seletiva. Por um lado, ele é inexcedível no recurso pela subsistência. Por outro, pode demonstrar seu desapego pelo altruísmo, pois na sua intuição, assume seu respeito pelo valioso, por ser escasso. Assim para o pequeno beija-flor, a água dos bebedouros representou uma dádiva que ele logo assumiu como sua propriedade.
Essa história de ornitofilia me dá substância para entender sobre alguns aspectos comportamentais do brasileiro, sobretudo, nesta situação de pandemia. Assim, o significado relevante da água e a postura perseverante do beija-flor são duas pistas interessantes para minha análise.
O simbolismo da importância da água, que fez o beija-flor assumir o protagonismo do território, representa a metáfora do que pode ser importante e digno de toda proteção, nesse ambiente adverso da pandemia.
Qual a lição que se extrai? É que uma definição de prioridade, que no caso levou um pequeno pássaro a agir na fixação de um espaço intocável como uma regra de sobrevivência, não pode ser algo qualquer. A vida em primeiro lugar, por mais que algum desavisado queira excluir esse mérito, por um certo juízo egoísta do beija-flor. Prefiro entender que sua ação individual está lastreada no reconhecimento do que é vital. E que assim se mostra para ele, simplesmente porque nos seus voos panorâmicos, bem sabe que a água é escassa. Em sintese: A lição número 1 é definir prioridade. Em tempos de pandemia, essa prioridade faz sentido dentro de conceitos óbvios: a situação é de saúde publica e exige imunização coletiva.
Por outro lado, a perseverança do beija-flor em lutar pelo que seu instinto julga prioritário parece se ajustar à realidade dos que resistem contra todas as formas que negam a pandemia. Esse simbolismo da luta de um ser tão pequeno diante dos adversários e predadores parece estar próximo, por exemplo, dos cientistas, das equipes de linha de frente e de todos os demais profissionais que costumam perseverar a favor da verdade. Enquanto todos esses sabem bem o quanto é duro seguirem firmes com seus ideais, outros parecem não estar nem aí. Ou rejeitam plenamente e fazem da negativa um contraponto. Ou tentam disfarçar seu senso ético dúbio. Nesse último caso, estão os que descarada ou afrontosamente furam fila. Os que falam mal da vacina, mas discretamente são vistos na fila. Tem de tudo para que o doce desejo das hipocrisias abelhudas se sobreponham à escolha e à perseverança do modesto beija-flor.
Ah, que o digam também as abelhas atrevidas e oportunistas que encostam no bebedouro. Não pela prioridade da água. Mas pelo desejo doce de extrair o resto de açúcar que lá existe, só por conta daquela minúscula pitada de ração.
Nas lições desse breve ensaio ambiental, entre pássaros passageiros e abelhas abelhudas, o discreto beija-flor foi um bom mestre, apesar das tensões à flor da pele. Ou melhor, da pena.
Salve a natureza!
*Este texto me serve como um roteiro despretensioso, que pretendo adaptar para uma história infantil, cujos personagens são o beija-flor Beijinha e a abelha Bebel.
Meus netos são a verdadeira fonte de inspiração para essa iniciativa inédita.
Acabei de defini-la como uma prioridade nessa trajetória sexagenária de vida.
Recife, 20/04/20
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco