A RÉGUA QUE MEDE CRIMES: UMA PARÁBOLA CIVILIZATÓRIA –
Imagine uma certa civilização organizada como nação, que se chama Tosvênia. Em vez de se considerar valores culturais derivados de etnias, o que se sabe da Tosvênia é que foi resultante de elementos outros. Algo como uma nova consciência psicológica, forjada pelo mundo virtual de algoritmos, que foi capaz de “robotizar” as mentes do povo. Uma espécie de tradução da lavagem cerebral do velho mundo analógico. Assim, a Tosvênia reuniu uma inédita geração de toscos e tolos, razão do elemento comum das duas letras iniciais, para nominar a nova nação.
Revelo uma parábola feita por lá, do jeito que se apresenta. Algo estranho que acontece nessa insólita República. São situações distintas que cabem uma melhor reflexão a respeito, pois misturam seus próprios valores – dos mais toscos aos mais tolos possíveis.
Sigo, então, os fatos. Por um lado, há um crime que se traduz numa enorme tragédia familiar. Por outro, a Assembléia Nacional da Tosvênia abre uma investigação contra os líderes da maioria de toscos e tolos, para saber sobre a alta letalidade causada por uma impiedosa doença. Dois contextos de comoção explícita, bem difundidos por meio de imagens, televisivas e das mídias de internet. Não há como irrelevar.
Cena 1. Da tribuna do júri, a fala competente do advogado de um réu, acusado pelo assassinato do próprio filho. Na defesa desse acusado, o advogado alega que o réu “é um homem íntegro, zeloso com a família e que nunca deixou de prover a mesma com os recursos financeiros e todos demais necessários à subsistência”. E foi mais além: “que a morte do filho foi um mero acidente”. Noutras palavras, ele defende seu cliente, baseado numa trajetória de esposo e pai exemplar, que em nada prevaricou.
Eis o inusitado. A defesa insiste na tese do acidente como meio de minimizar a tragédia, embora sem deixar de exaltar que, no tal acusado, há atributos que precisam ser considerados. É como se nele existisse uma escala de valores bem maior que qualquer problema. Enfim, parece existir uma régua capaz de medir só coisas boas no comportamento do réu, algo suficiente para zerar qualquer crime acidental. Nesse esforço, a ideia é tornar a métrica do crime como algo menor, diante de outros atributos vistos como superiores. Na forma que essa situação se põe, aos promotores cabem fazer a justiça prevalecer, num contexto onde prováveis virtudes não anulem o crime.
Cena 2. Do plenário da Assembléia Nacional, uma investigação foi aberta para se entender a alta letalidade de uma grave doença, diante das evidências de desleixo por parte das autoridades sanitárias. As ordens do alto poder republicano eram destinadas para a massificação de um remédio, uma espécie de panacéia que sustentaria no curto prazo uma imunidade tal, que não seria necessário o investimento em vacinas. Por mais que a droga fosse um autêntico placebo, a autoridade, seus auxiliares e uma platéia virtual, todos nas suas típicas razões toscas e tolas, insistem na tese terapêutica. Quem sabe o tratamento precoce sirva de consolo para uma normalidade, que na sua convivência natural permite uma contaminação sob controle.
Se assim se pensou, assim se cometeu na Tosvênia um erro político de graves consequências. Afinal, o resultado dessa estratégia dos toscos e tolos tirou a vida de milhares de compatriotas, vitimados pela doença. A falta de planejamento geral e o descaso na proposição de políticas públicas mais eficazes são situações que põem as autoridades em xeque na investigação. Só que a tropa de choque das autoridades se depara com uma minoria da sociedade na Assembléia, que não admite a supremacia dos toscos e tolos. Tais resistentes não aceitam a tese de que as autoridades, autodefinidas como guardiãs da moralidade pública e dos bons costumes, estejam afinadas com argumentos tão ideologizados. Tudo isso, por si só, atende o que esses adeptos entendem ser o desejo da sociedade. A régua aqui pode ser outra, mas tenta impor também sua supremacia. Não importa que existam tantas mortes, pois o que é superior na política é saber que as autoridades se preocupam mais em combater a corrupção ou quem se insurja contra o ideário.
Dito isso sobre a situação da Tosvênia, o que se pode extrair desses dois casos? Nem 8, nem 80. As réguas que medem a gravidade das situações impõem uma só conclusão, embora esse não seja o propósito dos atores envolvidos, que querem a supremacia como resposta comum às duas cenas.
O óbvio é que não há crime que possa ser minimizado, porque a autoria possui outros predicados. Não é por ser o réu um exemplo familiar, que isso justifique um assassinato em família. Nem muito menos, por ser alguma autoridade combativa na moralidade pública, que isso possa servir de pretexto para negar o verdadeiro combate a uma crise sanitária que retirou a vida de milhares. Cada crime merece seu julgamento com réguas isentas e sem subterfúgios compensadores.
Parece que essa parábola do lado de lá da Tosvênia, pode-se traduzir numa lição civilizatória do lado de cá dos trópicos.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco e colunista da Folha de PE