Universidade: se os meios justificam os fins, os mitos explicam as crises I – 

“No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade.”
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro,1881.

Em algumas ocasiões, tenho recorrido ao realismo machadiano para tentar entender alguns nuances do cotidiano socioeconômico atual. Isso não me faz sentido apenas pela essência realista. Afinal, parece-me que o Brasil do final do século XIX, visto pelo olhar irônico e pessimista do cronista Machado de Assis, encontra-se mais atual do que nunca.

Muito embora a frase em destaque, extraída do livro “Memórias Póstumas”, seja da experiência do “morto-vivo” Brás Cubas, durante sua passagem acadêmica pela Universidade de Coimbra, serve-me aqui como mera referência pela possibilidade de usar o dualismo do personagem, no sentido de entendê-lo na concepção do que seja a universidade brasileira. Trata-se de um recurso palpável, porque se advoga a tese de uma renitente – e não menos, resistente – crise institucional sobre os ambientes do ensino, da pesquisa e da extensão, que são a razão de ser da universidade. Faz todo sentido. Tanto meu recurso como o fato dessa eterna crise de identidade se mostrar impregnada na realidade institucional.

Inicio a primeira parte da abordagem hoje e espero conclui-la na próxima coluna. Quero aproveitar o ensejo desse debate para ir além dos aspectos conjunturais deste momento, que tratam simplesmente do embate em torno dos recursos financeiros. Assim, atenho-me agora aos aspectos  mais gerais dessa crise na Universidade, numa visão mais estrutural do problema. Depois, comentarei sobre os cortes orçamentários nos gastos com a educação pública, nos quais as universidades federais são então  atingidas.

O entendimento sobre  esses aspectos estruturais talvez nem seja tão oportuno agora, para efeito de uma discussão técnica adequada e propositiva. Afinal, essa iniciativa também representa um esforço em favor de disposições políticas, que sejam capazes de executarem efetivamente suas propostas, sem falsas promessas. Por isso, talvez antecipe aqui um bom debate para 2022, porque é preciso tratar a educação como uma prioridade real. Exatamente, da mesma forma que se deve aproveitar as lições que puderem ser revistas, diante de tantos erros e omissões cometidos.

Como quem sabe faz a hora e não espera acontecer, penso que chegou o momento de sair desse largo abismo do discurso político, justo esse que se exprime entre o falar e o fazer. A educação brasileira é o exemplo clássico da prioridade que jamais aconteceu. É o personagem da viúva Porcina de Dias Gomes, que assumia tal estado sem nunca ter sido. Ou melhor, é o Brás Cubas de Machado, rico no seu cabedal de contrates. Ou naquele seu dualismo de exercer o “jeitinho universitário de ser”. Esse é o real retrato da educação no país. As molduras que lhe cabem, porém, revelam outras inspirações, nessa mesma análise indifefente, às vezes irônica e nada otimista, bem ao estilo machadiano.

Uma moldura clássica do retrato está na questão financeira. Por princípio conceitual, efetivar cortes ou bloqueios de recursos de orçamentos públicos para à educação, por si só, representa um exercício inaceitável. Afinal, qual a razão dessa aposta se é exatamente no processo educacional que a sociedade enxerga o principal gargalo que impede o desenvolvimento? Por mais que os meios sejam assim justificados, os fins obtidos revelam faces questionáveis desse retrato. É por aqui que os mitos, construídos ao longo de uma história de contrastes, mostram o lado real: uma crise eterna que se renova em cima de infinitas prioridades. Só o tempo resiste para provar que as molduras feitas por promessas persistentes e mandatos expirados de nada serviram. O retrato continua o mesmo.

Por o dedo nesse bedelho representa três linhas de coragem, que se fazem necessárias desde muito tempo. Em primeiro, é preciso admitir que o Estado brasileiro não destina pouco recursos para a educação. Segundo, que persistem escolhas programáticas equivocadas e gestões predatórias criminosas, na alocação desses recursos. Por fim, os modelos de avaliação desses investimentos, na forma de resultados transformadores, são pífios.

Sem que se parta desse princípio estrutural tão  elementar, qualquer avaliação sobre recursos gerais para a educação se torna superficial. Aqui também cabe a essência desta coluna – nem 8, nem 80. Ou seja, a defesa do mérito técnico exige só um critério: minimizar as ideologias e maximizar o pragmatismo. Tudo isso diante do desafio dos conflitos de interesse e das armadilhas dos privilégios.

Feita essa abordagem sobre o “desprestígio” e a “falta de recursos” do setor educacional, no texto seguinte irei tratar dos aspectos conjunturais dos cortes e bloqueios, em especial nas universidades.

Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco e colunista da Folha de PE

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