Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa –

Ditados populares têm seus ensinamentos. Com base num deles e que intitula este texto, três questões atuais me intrigam e instigam. Primeiro, pela insistência com que são colocadas e repetidas, num esforço notório de fazê-las verdades absolutas. Depois, justo por conta desse esforço que forja narrativas, cabe-me instigar o contraponto. Afinal, a frequência habitual de uma mentira termina por fazê-la como uma (falsa) verdade.

De fato, quero aclarar que os três pontos que aqui reservo aos meus comentários, além de estarem em evidência, trazem também impactos econômicos. Afinal, todos partem das distintas dimensões da crise instalada no país.

Outro aspecto a destacar  é que tais questões servem também a uma lógica de conveniência político-ideológica que se deseja prevalecente. Ou seja, são posturas seletivas que atuam na direção das informações que convêm. Mais precisamente, tudo funciona a reboque de um universo ditado por redes, aplicativos, algoritmos, robôs, lacrações e outros conceitos. Forjam-se narrativas que ajudam a criar um ambiente que separa o real e a fantasia. Para isso, crio uma expressão representativa dessa realidade: a feiquização – uma tese da fantasia (a relativização da mentira) que se propaga na intenção de ser um fato real (o absolutismo da verdade). Como “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, a bem da verdade, destaco:

1) Seletividade estatística  > A técnica de se trabalhar o erro na intenção da verdade está na forma de se ignorar números relativos. Daí, faz bem ao Ministério da Saúde dizer que tem uma das quatro populações mais vacinadas no mundo. No uso dos números absolutos, ignora-se o peso da população brasileira. O relevante a saber é que só 10% da população foi imunizada com duas doses. Mas, para a narrativa da falsa verdade, o fato de impressionar com os números absolutos serve para esconder a inércia da compra dos imunizantes na origem e a lerdeza da reposição no transcurso.

2) Visão temporal  > A interpretação estática ao longo de tempo ignora o processo dinâmico de fluxo ao bel prazer da narrativa. Isso é válido até na persistência da opção por tratamento precoce de uma doença infecto-contagiosa, que se revela cientificamente todos os dias. O negar a ciência está nos comparativos estatísticos de óbitos com outras enfermidades e até acidentes. Na intenção dessa narrativa, tratam diferentes como iguais, confundem estática com dinâmica e ignoram que prioridades se fazem setorialmente com base na escassez de recursos. Enfim, põe-se a ciência do lado, esquece-se que ela se faz sob critérios escalonados e sob percepção temporal.

3) Desvio de foco > Na mesma intenção de narrativa, esse é um recurso habitual. Na CPI que rola no Senado, o certo seria focar em duas situações. A primeira seria tratá-la no seu sentido político. Não considerar assim representaria uma tolice, pois toda ela é política, pela própria essência institucional. Não há nada de errado nisso. A segunda seria ter como alvo os fins e não os meios. Ou seja, ela quer saber diretamente dos maus resultados consagrados pela política sanitária. Não é especificamente sobre um ou outro meio que levou à tal situação. Deseja-se, por exemplo, saber o porquê de não se ter planejado um programa de imunização. Isso foi pela tese do contágio coletivo como estratégia? A demora foi resultante da opção pelo tratamento prévio? Se o dinheiro existe e foi bem ou mal aplicado, isso é outra história. Caberia outra investigação.

Enquanto o país insiste nessas narrativas conceituais, a pandemia avança e a economia patina. Dura realidade.

 

Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco e colunista da Folha de PE

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