“Eles Passarão e Eu Passarinho”, Mas a Economia Não Consegue Voar… –
Como fiz em outras ocasiões, antes de entrar nesse contexto árido da economia, creio que seja bom mergulhar no senso humanista da arte. Isso me serve como um bálsamo diante de momentos tão cáusticos que se têm vivenciado, aqui e alhures.
Hoje, valho-me da força do “poeta das coisas simples”: o gaúcho Mário Quintana. Minha inspiração vem de um estilo simplista fascinante, além de duas frases lapidares que foram eternizadas por ele. A partir disso, arrisco-me na construção de um elo que contribua para interpretar algumas dificuldades atuais da cena econômica.
Quintana comemoraria em julho passado 115 anos. Na sua vida e obra deixou uma sensível marca poética, pautada pela simplicidade e pelo bom humor. Meu primeiro registro sobre ele é pessoal e pontual, pois se rendeu a esse estilo que bem o caracterizava. Assim, em Porto Alegre, na primeira vez que tive no velho “Majestic”, já dignamente tombado como o espaço cultural que abrigou seu nome, confesso que fui além do presencial.
Na visita, pude entender a força do que estava por trás da sua modesta morada. Ali, restrito a um quarto de hotel, que um dia lhe conferiu o despejo devido às dificuldades financeiras, enxerguei a grandeza de uma frase que preferiu, após ser levado por um amigo para um quarto melhor, embora menor. Diante do aperto físico, respondeu com o espaço infinito da sua sabedoria, quando disse: “não me faz mal se o quarto é pequeno, porque é em mim mesmo onde moro”. Só Quintana para tamanha sensibilidade. Afinal, dele também se sabia que “toda confissão não transfigurada pela arte pode ser vista como indecente”. Exemplar.
Pois bem, esse primeiro ponto que extraio das reflexões do poeta de Alegrete, serve-me de prenúncio para frase definitiva. Quem sabe agora, cercado pela inspiração “quintaniana”, isso possa ser tão sutil quanto ouvir uma sinfonia de pássaros. Nada mais disopilante para contrastar com esse alto grau de incerteza que paira no ar. O que vale é saber que o desafio de efetivar o plano de voo está posto. Seja para a natureza de um simples passarinho. Ou mesmo, para a decolagem de uma pesada aeronave, que taxia desorientada na pista.
Aposto que esses comparativos fazem sentido. E o elo que preciso está justamente no “Poeminho do Contra”, escrito por Quintana em 1982 , para a revista “Isto É “. Simples como ele. E objetivo, como tem que ser: “todos esses que aí estão, atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho”.
O retrato da sociedade brasileira, na sua imensa simplicidade de passarinho, que assume a condição de “eu preciso arriscar e voar”, segue às cegas uma sina. Na atual realidade, determinada por uma crise multidimensional. Contudo, os rigores da face crítica que aí está dada pela economia põe em dúvida as condições da aeronave. Pior: a torre e a tripulação a bordo ignoram qualquer plano de voo, pelo ofício desastroso de misturar soberba impositiva com amadorismo disfarçado.
As condições de tempo dadas pelo painel de controle para a economia não são boas: descontrole fiscal renitente; inflação em tendência de alta; queda nos índices da bolsa; câmbio desfavorável; baixa credibilidade mundial; aumento contínuo do desemprego; alargamento na faixa da pobreza; e, vislumbres de mais desigualdade de renda e de inércia no ritmo de crescimento.
Para esse tamanho de pane nos comandos da economia, acrescente-se ainda as turbulências causadas pelo desapego à sustentabilidade. Seja pela falta de iniciativas para romper com o gargalo educacional, bem como, pelo desinteresse em superar os desafios ambientais. Turbulências inevitáveis à vista.
O céu que acolhe os passarinhos, pela natureza da sobrevivência, não está mesmo favorável para a decolagem da economia. Os responsáveis não só atravancaram esse caminho imediato, como já perderam de vista a rota sustentável dada pela educação/cultura e o meio ambiente.
De alguma forma, a vida e a poesia de Quintana ainda nos servem de alívio.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador. Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco
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