Pandemia, Inflação e Miséria: De Volta à Consciência Mesozóica –
Anos 80. Tempos de uma crise econômica que parecia insuperável. Um jovem economista, preocupado com a excelência acadêmica dos cursos de pós-graduação em creditação, iniciava sua produção de olho no duro “laboratório econômico” de experimentos do cotidiano. Quando não era uma tarefa acadêmica sobre a dívida pública, quem sabe era algum artigo sobre os tantos “pacotes” de medidas anti-inflacionárias. Ou mesmo, os primeiros textos em defesa de instrumentos para proteção contra o desemprego.
Claro que o economista em referência é este comedido colunista que, três décadas depois, ainda se atreve em exercitar o que fazia antes. Sem aquela inspiração de aspirante entusiasmado, que se apoiava no cerne quase inabalável das teorias que acolhia. Agora, embalado pela aspiração inspiradora de uma assumida experiência, alcançada pelo que presenciou, acompanhou e revisou dos inúmeros argumentos e experimentos. Tudo à luz de um pragmatismo levado à necessária ponderação.
No saldo de velhas lembranças, além do orgulho de ter sido um dos pioneiros na defesa acadêmica pela adoção do seguro-desemprego, a certeza de que carreguei – até recentemente – apenas o registro histórico daquele “laboratório de crises”, status econômico que julgava como superado. De certo modo, até que poderia apostar trazer ao crivo da análise, eventuais picos nos indicadores de desemprego e pobreza, pelo desapego governamental à política social. No entanto, não constava nos planos do economista tratar do ressurgimento de uma pressão inflacionária de triste memória. Isso me parecia quase improvável, após a estabilidade promovida em 1994 pelo Plano Real.
Dada essa referência histórica, resultante da decisão política e da competência técnica que levaram à estabilidade nos preços, uma geração não tem a menor noção do que seja viver na hiperinflação. A dimensão do problema não está apenas no descontrole de se assistir ao absurdo das remarcações diárias nos preços. O grave disso é entender que esse comportamento incomum penaliza os mais pobres, da maneira mais perversa possível. Por isso, defino o sucesso do “Real”, não apenas como um simples ponto de inflexão, que gerou êxito macroeconômico. Sua grandeza está também no fato de ter criado as condições de uma estabilidade geral no país, capaz de ter nos dado um sentimento de que, por quase 15 anos, não só a economia havia entrado nos eixos.
Se os sinais de um desequilíbrio já estavam sinalizados, na segunda década deste início de século, o desastre agora são vê-los consagrados, em descompasso e perigo iminente, pela má gestão da equipe econômica. Após tanto tempo, verificar que a taxa de inflação voltou ao patamar dos dois dígitos, justo num governo cujo gestor da política econômica é um liberal ortodoxo, leva-me a desacreditar nos calafrios que causavam à equipe falar sobre a tolerância inflacionária do passado. E o pior, nesse ressurgimento do monstro jurássico da era mesozóica, é perceber a disseminação da alta de preços já presente em diversos produtos (sete em dez pesquisados). Um temor que deteriora o dilacerado tecido social brasileiro, que vê seus indicadores tomarem proporções alarmantes.
Se o quadro social já era de debilidade, muito antes dessa pandemia tão deletéria para a saúde da população e da economia, que defesa pode ter o governo diante de quase 15 milhões de trabalhadores desempregados (PNAD) e algo ainda como 14,7 milhões de famílias que subsistem na pobreza extrema, com renda abaixo de R$ 89/mês (CadÚnico de junho/21)? Triste retrato de uma tragédia social anunciada e sob riscos claros de piora, justo pela perda do controle da inflação. Assim, não haverá sequer manobras ou “pedaladas” sobre segurar os precatórios ou outros ganhos de receitas, que façam do “renda Brasil” ou coisa que o valha, uma garantia de subsistência. A experiência histórica já mostrou que o “dinossauro quando volta ao parque” é sempre intolerante com os mais pobres.
Hoje, lamentavelmente, a sociedade brasileira resiste a um cenário de sobrevivência. Não bastasse toda dor da perda de quase 600 mil compatriotas, dizimados pela pandemia, encarar a volta de um passado recente e com essa consciência jurássica, parece-me desafiador. Aumentos no desemprego e na pobreza diante de uma inflação ressuscitada é o pior dos mundos. Um conhecido experimento, mas que coube agora ser revisto por um economista mais experiente. Só não estava no meu roteiro.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador. Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco