É preciso rever o papel socioeconômico da saúde pública –

A pandemia tem proporcionado muitas lições, nas mais distintas áreas, seja pelo lado individual ou institucional. No entanto, percebo que não há um mínimo reconhecimento, quando o aprendizado e a estratégia poderiam ser considerados numa sequência, como etapas naturais de alguma mudança importante. Dado que há um viés socioeconômico para se relevar, tomo aqui como referência a saúde pública, justo o setor de relação mais imediata, nessa minha breve análise sobre as lições extraídas do impacto da pandemia.

De fato, a condução dada pelo governo no enfrentamento da crise sanitária tem distintas consequências. Muitas delas bem conhecidas, pela própria grandeza dos erros cometidos. Da ausência de um trabalho efetivo de coordenação ao atraso do programa de imunização, todos aspectos relacionados foram bem difundidos, também traduzidos pelos seus efeitos econômicos. Mesmo diante desse contexto nada favorável, quero expor à luz do debate outros pontos de menor visibilidade. Não apenas pelo fato de trazer alguma expressão socioeconômica, como também pela necessidade de inseri-los na pauta política. Afinal, são lições de cunho estrutural extraídas da pandemia e que não podem ser mantidas sem uma intervenção corretiva, suficiente para estar no plano de gestão de qualquer governo. Pelo menos, que leve a sério o papel de uma política social, que julgo vital à percepção de um modelo de desenvolvimento econômico sustentável.

A defesa desse meu argumento em favor da saúde pública passa por dois níveis de consideração essenciais a quaisquer planos estratégicos: 1) o fortalecimento do papel socioeconômico do SUS; e, 2) a revisão da cadeia produtiva da saúde, com ênfase numa política industrial menos dependente do mercado externo.

Embora a pandemia tenha consignado ao SUS algum nível de reconhecimento e mérito pelo bom cumprimento do seu papel, cabe aqui a lembrança dos problemas funcionais e orçamentários que a instituição tem carregado ao longo de pouco mais de 30 anos de ação. É claro que, para esses equívocos de decisão política, não cabem comemorações. Revisar tais pontos neste momento de aquecimento de um debate eleitoral que se espera frutífero, faria um bem danado à memória de Hésio Cordeiro. Este grande sanitarista, falecido em novembro passado, foi o maior responsável pela criação do SUS, pois sob sua coordenação (enquanto presidente do então INAMPS, em 1986), no bojo da realização de uma Conferência Nacional de Saúde sobre reforma sanitária, que foram lançados os princípios do que seria esse sistema: universalidade, equidade e integralidade.

Noutras palavras, contra um modelo excludente de saúde pública, criou-se uma proposta institucional revisionista, submetida ao dever de Estado, via ações governamentais tripartites e com foco numa assistência universalizada junto à população. Argumentos sustentados em 1988, no processo de articulação em torno dos trabalhos constituintes e na sua implantação efetiva. Embora toda essa conquista tenha sido um fato louvável e mesmo diante de dificuldades operacionais, o que a pandemia expôs foi o contraste de um sistema de muita importância, mas carente de dotações mais expressivas no orçamento. Um processo histórico de perdas que vêm das próprias origens do SUS, quando houve os desmanches do INPS e, em seguida, do SINPAS.

O outro aspecto importante revelado como uma lição adicional da pandemia foi a brutal dependência que o Brasil tem hoje de insumos e medicamentos produzidos no mercado externo. Cito aqui três exemplos desse ofício danoso em forma de centrais globais de produção : a) 75% dos anticoagulantes são produzidos pela China; b) 85% do princípio ativo de muitos remédios são produzidos pela Índia; e, c) os ingredientes farmacêuticos ativos (IFA) das vacinas aqui usadas vêm dos dois países.

Longe de entender o problema como algo exclusivo do Brasil, foi mesmo preocupante para outras economias assistirem a tal poder de duopólio, pois esse ofício de mercado demonstrou ser capaz de influenciar todas cadeias produtivas do mundo. No entanto, são muitos os argumentos sobre a capacidade técnica brasileira de exercer igual produção, defesa essa que dependerá de estratégias e incentivos, que poderão servir de componentes de um plano de desenvolvimento.

Apesar de tantos efeitos contrários, a pandemia trouxe ensinamentos que servirão de roteiro para uma nova agenda socioeconômica. A partir daí, o papel do SUS não poderá passar despercebido do debate, tanto quanto o repensar da política industrial que atende às demandas da saúde pública. Ambos, são temas prioritários.

 

 

 

 

 

Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador. Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *