O Apogeu da Desumanidade e a Barbárie da Fome –
Nessa distopia que o país parece consagrar, em favor de um modelo autocrata de insensibilidade social, resta-me uma sensação que não pode calar. Tudo leva a crer que a cultura da eterna tolerância com as desigualdades sociais, mostra-se ainda como cega, diante de uma segmentação incabível e conflituosa entre humanos e bichos. Com o agravamento da pobreza, o Brasil ensaia o apogeu de uma desumanidade, potencializada pela barbárie do retorno da fome, que até então estava mais ao alcance dos nossos olhos no ambiente da literatura, do que mesmo no flagrante das ruas.
De fato, as experiências literárias sobre os temas da pobreza extrema e da fome, da autoria de Victor Hugo a Graciliano Ramos, do protagonismo de Jean a Fabiano, mesmo que ficcionadas em cima de realidades distintas do passado, parecem fazer sentido para o atual cotidiano brasileiro. Aquele quadro que se pensava superado por um certo dinamismo socioeconômico, volta à cena agora, numa combinação decorrente do desleixo ideológico e da avalanche pandêmica, aspectos que expuseram o fiasco de uma política social raquítica.
Aqui, tomo a clássica obra francesa “Os Miseráveis” como mera referência. Apesar de escrita e publicada no século XIX, cabe como mero registro do sofrimento de pessoas pobres, que enfrentavam a força impiedosa da fome, na sociedade francesa de então. Evidente que, o realce do romance ‘Vidas Secas” de Graciliano pode ser semelhante, mas tem na veia a essência nacional, caracterizada por uma família de retirantes do sertão nordestino. A fome, a miséria e a desigualdade social se mostraram ainda mais cruéis pela vida subumana, fortalecida por uma conhecida e repetida calamidade: a estiagem que costuma se instaurar no solo do nordeste brasileiro.
No bojo do drama familiar vivido pelo personagem Fabiano, cabe também destacar a presença e o protagonismo marcantes da cadela Baleia. Duplamente vitimada pelo espirito de sobrevivência, diante das mesmas condições de miséria extrema. Assim, percebe-se que a seca climática contagiou o autor, que demonstrou no seu estilo seco de escrever, os brutais efeitos sobre seus personagens. O ápice dessa percepção está representado pela notória “desumanização”, um recurso que se mostrou capaz de transformar humanos em bichos.
Na realidade, essa associação, em tempos mais agudos de percepção da pobreza, não é mero recurso para impressionar ou comover. Lembro bem de um fato, que ganhou notoriedade nacional no inicio dos anos 90, quase 5 décadas depois da publicação de “Vidas Secas”. Refiro-me à evidência de um cidadão daqui de PE, que diante da adversidade imposta pela fome, disse numa matéria jornalística que a saciava comendo ratos graúdos, o cbamado “gabiru”. Naquela oportunidade, viveu-se a vergonha do “homem-gabiru”, um simbolismo apenas maior do que outros tantos pares, que já se digladiavam diante dos lixões das metrópoles. Mais um exercício desse “jeito animalesco de sobreviver”, onde a luta por uma vida digna se justifica pela exótica opção de “buscar alimentos” fora do padrão nutricional.
Nessa linha de análise, se no registro ficcional a seca foi a calamidade que agravou o quadro, nada tão diferente – e até pior – que o registro real ditado pela pandemia. Entre alguns estudos e pesquisa, faço referência aos trabalhos do Gallup World Poor e do Centro de Políticas Sociais da FGV/SP (FGV Social). No primeiro caso, através de análise de um conjunto de dados internacionais colhidos no bojo da pandemia, a constatação de que o Brasil foi onde a desigualdade mais se agravou frente à crise sanitária. No segundo, o resultado de uma avaliação da FGV Social, derivado de uma pesquisa sobre os efeitos das políticas públicas na saúde, educação e meio ambiente, mostrou uma forte percepção entre os entrevistados e os dados colhidos, que a população de faixa de renda mais baixa foi profundamente afetada. Ou seja, na interseção desses estudos, corroborou-se a tese de que a deterioração do tecido social brasileiro foi mesmo algo real e dramático.
Enfim, quero apostar na tese de que a pandemia em si, não poderia apenas trazer para o âmbito das reformas estruturantes, uma visão de política social imediatista, de olhar exclusivamente pelas lentes do curto prazo. Aliás, esse é um erro comum dos governos que se rendem aos apelos populistas. Por não mirarem nas questões estruturais, pecam pelo viés da inação e daí sobejam nas omissões.
A se lamentar que diante de tanto ofício de desumanidade diante da miséria e da fome, o país continue à reboque de um eterno e irresponsável “enxugar gelo”, quando o assunto é o estabelecimento de uma estratégia planejada e consistente de política social. Se a pandemia continuar a não servir como lição, não só teremos que conviver com mais “Fabianos” nas ruas. Pior seria o risco dos destinos inglórias das tantas “Baleias” e tantos “gabirus”.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador. Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco
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