Sem Nexo com a Essência e Desconexo com a Realidade –
A Triste História de uma República que Sobrevive à Luz das Contradições
Do realismo da literatura machadiana às crônicas rodrigueanas sobre o caráter nacional. Da Belíndia de Bacha à proposição do “vira-latismo” assumido de Giannetti. Na essência desses pensamentos e por todas suas influências correlatas, corrobora-se a tese de que o Brasil é mesmo o repositório das suas contradições.
Claro que a dimensão plural da nossa sociedade pode até explicar parte desse fenômeno, cujas raízes são históricas. Como exemplo direto, tomo aqui como referência a diversidade cultural, um atributo que nos enche de um orgulho difusivo. Com a riqueza de tantas diferenças em exposição permanente, parece-me natural que essa expressão plural venha a ser impregnada de certas objeções. Muitas delas, toleráveis por princípios democráticos. Acontece que ideias e comportamentos costumam extrapolar, principalmente quando os ambientes se revelam propícios à força desses contrastes. E quando a cena política se comporta às custas de uma polarização sufocante, tais contradições se expõem e até se firmam como se fossem rotinas. Contraditas que auxiliam também no entendimento concernente às incertezas que pairam sobre as cabeças dos agentes econômicos.
Os “ventos” recentes se encarregam de evidenciar tais contradições do nosso país. Na maioria das vezes, sem o devido nexo nas suas essências, bem como, desconexas com a realidade emergente. Uma história de sobrevivência e rendição que poderia ter sido tratada com menos intensidade. Ou melhor, por diligências dotadas pela emoção de ser diverso, mesmo que disciplinadas pela razão de ser preciso.
Para essa minha tese, dois pontos me bastam. O primeiro deles tem uma larga história de convivência que beira a intolerância. Aqui me refiro aos mais altos níveis de concentração de renda, que garantem às desigualdades sociais um protagonismo presente à realidade socioeconômica do país. O segundo dos pontos trata da confusão conceitual causada por motivações políticas, uma vez que ideologias econômicas são jogadas no lixo, quando à política se abraça com o populismo.
Sobre essa questão da distribuição de renda, refiro-me à dose de concentração. A polêmica distributiva foi aguçada a partir dos anos 70, para a qual poderia aqui ressaltar inúmeros estudos a respeito. Desse despertar acadêmico, a reação política decorrente desse alarme, no sentido de propor ações de combate ao problema e gerar resultados, foi pautada por estratégias de avanços e recuos. De concreto, muito mais da segunda, que da primeira. Foram exercicios típicos de contradição. Mas, como meu interesse é pautar o momento atual, cabe-mostrar o tamanho do contraste que tem derivado de uma política econômica que, sem planejamento e movida pelo ímpeto instintivo, tem trazido o país para a convivência com indicadores preocupantes.
Não é só a conclusão do relatório da Oxfam, que destaca uma situação que foi piorada pela existência orgânica de um “vírus de desigualdade”, concreta e aparentemente nato. Também não se trata apenas de uma situação que se fez existir por uma aceleração do problema devido à pandemia. Ambas situações têm lá suas influências. De fato, o essencial dessa história é o reconhecimento daquelas duas situações que aqui se completam. Há mesmo que se reconhecer uma velha inoculação dessa virose crônica chamada “desigualdade”. Algo meio que estrutural. Acrescente-se a isso o despreparo de uma gestão econômica que deu às costas para as políticas sociais. Ou seja, diante de uma convivência estrutural com a desigualdade, soma-se a contradição que se exprime pelo senso ideológico de uma equipe econômica que se define como liberal, diante de uma equipe política, acostumada a esbanjar nos gastos públicos. Por um lado, parece não existir contradição. Por outro, ela se mostra vultosa. Nesse jogo, ganha a política populista. Exacerbam-se as contradições.
Nesse cenário, as evidências discrepantes entre o pensar e o fazer explicam a eterna aposta de uma república que se acostumou a sobreviver à luz das suas contradições. Não bastasse a ferida crônica de uma desigualdade histórica, mesmo que em alguns momentos fosse arrefecida. Agora, pela conjunção de forças que decorre da falta de compromisso governamental com uma política social efetiva e consistente, que terminou por ser agravada pela crise sanitária.
Machado, Rodrigues, Bacha e Giannetti, entre tantos outros intelectuais, pensadores e técnicos externaram, na perspectiva de suas áreas de atuação, a real dimensão do problema. Nessas evidências, formas e dimensões se alteraram para mais ou para menos, em termos de concentração de renda. Só que, no momento atual, fazia tempo que os números não se revelavam tão assustadores.
O desafio do enfrentamento de hoje exigirá muito além do que se imaginava.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador. Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco
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