Cultura Sem Relicário e Sabor: Nem Centenário da Semana de Arte, Nem Pesar por Jabor –
Por mais que a racionalidade do artista ou empreendedor tente “despolitizar” as discussões, os últimos dias deste início de 2022 chegaram para confirmar um obscurantismo opressor. Uma particularidade que corrobora o setor cultural como protagonista de uma situação vexatória, de sobrevivência e resistência em “terra arrasada”.
Tenho consciência do quanto o destino e o tempo podem se encarregar das coincidências que ilustram trajetórias. Essa figuração da “terra arrasada” trouxe-me uma vaga lembrança de um poema, escrito em 1922, por T.S. Eliot. Uma livre tradução da primeira frase de “The Waste Land” diz o seguinte: “abril é o mês mais cruel, cultivando lilazes na terra morta, misturando memória e desejo, remexendo raízes morosas com a chuva da primavera”. No embalo desse despertar artístico, por mais que as cinco partes do poema expressem tantas mazelas, há também coincidências por serem aqui reveladas. Que no mesmo ano de 1922, entre 13 e 18 de fevereiro, São Paulo pôs em evidência uma legítima “revolução cultural”, focada no valor da identidade nacional. Um passo civilizatório que traduziu a atividade artística-cultural como um referencial diferenciado. Portanto, aquele evento cultural foi um dos marcos desta nação.
Exatos 100 anos depois, em pleno século XXI, a cultura brasileira atravessa uma das suas mais graves crises. Sem o reconhecimento da grandeza de sua expressão socioeconômica. Sem uma política de valorização e olhar diferenciado, diante de tamanha diversidade. Sem preservação e memória em torno dos seus patrimônios, materiais e imateriais. E, sem sequer uma mínima racionalidade na empatia, suficiente para reverenciar a morte de quem tanto contribuiu para a cena cultural brasileira. Registros históricos e ofícios meritórios, que sempre orgulharam um país reconhecido pela riqueza e diversidade da sua cultura, estão postos agora no fogareiro do ostracismo. Atitudes e fatos falam por si.
Mesmo diante do simbolismo comemorativo do centenário da independência (só comemorado em setembro), de 13 a 18 de fevereiro de 1922 foram lançadas as bases do que se convencionou chamar de “movimento modernista”. Distintas manifestações e linguagens fizeram com que fosse impregnado um sentimento próprio de modernidade. Isso gerou a transformação de referenciais da chamada vanguarda europeia em obras sintonizadas com a dura realidade brasileira. Em qualquer lugar do mundo, o registro do centenário de um movimento com esse estofo cultural, seria motivo de muita comemoração. Independente dos efeitos de uma pandemia, o fato é que o centenário da Semana de Arte Moderna, não mexeu com os brios governistas, a ponto de reverenciá-la pelo nível da sua importância cultural e identitária.
Tão grave quanto relevar esse fato, foi renovar a falta de empatia geral, quando o mínimo que se espera, num quadro real de perdas humanas, seja a evidência e prática da solidariedade. O gesto humano que se origina de corações cordatos jamais pode ser substituído por atitudes desumanas de mentes bárbaras. Infelizmente, já são muitas as perdas de ídolos culturais, que foram desrespeitadas por um silêncio insano. O caso da vez é simplesmente Arnaldo Jabor. Entre o cineasta arrojado de estética “cinemanovista” (o cinema novo guarda sintonias com a essência transformadora da semana de arte) e a crônica jornalística de um sarcasmo inteligente, sobressai um raro quadro intelectual de serviços prestados ao país
Por essas e outras, a cultura vive uma fase inglória de perdas. Não bastassem os “olhos seletivos” que, por força de ranços ideológicos, não fazem questão de enxergar tantas baixas, é doloroso ainda ter que tolerar o tempero de posturas que agem para retirar o sabor da sobrevivência.
Como já expus em inúmeras ocasiões, há nesse jogo desconhecimento, desinformação e desinteresse, onde todos os argumentos em defesa do papel econômico e do empreendedorismo das atividades culturais são simplesmente desconsiderados. Pelo governo federal e por parte de uma sociedade que enxerga a cultura pelas mesmas lentes.
De fato, os acontecimentos recentes estão vinculados à disposição de mudar as formas de custeio em duas direções. Primeiro, pela forma absurdamente equivocada de alterar a lei de incentivo. Em seguida, por uma engenharia política no Congresso, para que não se aprove o atendimento emergencial ao setor, por meio dos recursos existentes no Fundo Nacional de Cultura. Assim, a segunda etapa da Lei Aldir Blanc e a introdução do aporte complementar vista pela Lei Paulo Gustavo também também tem pautado esse cenário negativo da senana. Um conjunto de situações que só serve para confirmar o obscurantismo como respaldo para tanto desprezo público com relação à cultura. Agora, bloqueiam-se os acessos naturais ao seu custeio. Justamente as atividades culturais, as que foram impactadas pela crise no seu início e que ainda não recuperaram seus performances originais.
Enfim, parece restar à política pública apenas uma disposição para apequenar o ambiente e o gosto dos que oferecem e procuram a cultura. E a cultura segue assim? Bem, insistem na perda do relicário – que sempre abrigou tanta diversidade – e do sabor – que sempre deu tempero e gosto ao cotidiano brasileiro. Todavia, o seror já assimilou que fazer cultura é prova diária de resiliência.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador. Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco