Olhos de Lince Que Não Enxergam a Realidade –
Embora Condicionadas às Interpretações, as Boas Lições Estatísticas Sobrevivem
Talvez por não termos sido preparados pelo mundo, para sabermos lidar com a verdade de um modo implacável, transparece que a vida tem nos ensinado a agir como se cegos fôssemos. Isso no sentido de que, na maioria das vezes e por depender de interesses próprios, parcela da sociedade só enxerga aquilo que deseja. Ou seja, os olhos foram “treinados” para mirarem suas visões com o propósito das mentiras, de tal sorte que as percepções das verdades levam a essas formas de cegueiras. Tinha razão nossa idolatrada escritora Clarice Lispector: “o óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar”.
Alguns especialistas no assunto poderiam tratar esse estado como de “cegueira não intencional”. Neste caso, o foco consumado ao contexto pretendido é tão significativo, que as perceptíveis falhas no campo de visão atingem um ponto de não se tolerar o óbvio. Ainda bem que há nessa situação outros tantos com “olhos de lince”, pois conseguem enxergar muito além que os refratários.
Numa real perspectiva de visão, pode-se até admitir alguma intencionalidade defensável naquele grupo dos que não querem ver. Só que, infelizmente, nos tempos atuais, essa espécie de “cegueira seletiva” parece ser o ofício do momento, porque o que interressa é ver e fortalecer uma verdade própria e absoluta, em cima de realidades contrárias. Isso só reforçam os exemplos de um maniqueísmo que se sobrepõe a tudo que lhe cause incômodo, apenas como meio de se contrapor ao outro lado. Irei explicar esse imbróglio das “falsas verdades” com fatos concretos recentes, para os quais lições estatísticas são capazes de mostrar a realidade. Isso, naturalmente, que num contraponto diferente, distante dos que insistem em defender e propagar mentiras.
Nesse contexto, para que valide aqui os argumentos expostos, antecipo-me com dois breves extratos de pesquisas recentes e distintas. Um primeiro, derivado de uma pesquisa eleitoral do BTG, que trata da compreensão de que 5% do eleitorado ainda crê que economia brasileira atravessa um bom momento. O segundo, decorrente de uma pesquisa do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade sobre os hábitos dos brasileiros, que revela um considerável aumento pela auto-medicação. Parecem temas distintos, mas há uma conexão neles que se traduz em impactos socioeconômicos.
O fato de só 5% se sentir num ambiente econômico favorável é de uma conexão tão direta, quanto à dúvida que resta, no sentido de se entender a “cegueira seletiva” dessa minoria. Se os “olhos de lince” para visão de longo alcance prevalece aqui, talvez por um resíduo de foco ideológico que se nega a ler a desordem econômica como verdade, o efeito ilusório será revelado mais cedo ou mais tarde. Uma simples encarada na realidade existente fora da “bolha” dos 5%, é suficiente para enxergar pontos como os preços dos combustíveis, a miséria escancarada nas esquinas e as prateleiras dos supermercados com produtos da cesta básica como meras miragens. Cabe um choque de realidade para que esse grupo olhasse as estatísticas da pesquisa pelo caminho inverso. Não há como “mascarar” os problemas, em nome de um embate eleitoral, por maior que seja o arsenal de concessões populistas.
Por outro lado, quando os números da outra pesquisa revelam o gosto nacional pela auto-medicação, à primeira vista se poderia dizer que nada de novo foi extraído. No entanto, para a faixa etária dos 16 anos e mais, a auto-medicação passou de 76% para quase 90%, entre 2014/22. Isso não quer dizer que haja por trás desse comportamento uma rejeição à ciência, pois noutra pesquisa recente a população, por maioria absoluta, revelou aceitá-la. O que preocupa é uma postura de se negar a saúde preventiva (bem mais barata) pelo caminho natural da consulta médica. O despreparado que orienta e o sabido “Dr. Google” ao alcance dos dedos, expõem a impaciência de quem precisaria ser e agir como paciente, no duplo sentido do termo. Nesse negacionismo, no qual até mesmo o eficaz programa de vacinas tem sido brutalmente desacreditado, a percepção de piora noutros indicadores, tem trazido de volta doenças infantis (sarampo e poliomielite estão em alta) e outras que se supunham controladas. Mais “cegueira seletiva”.
Parece-me que a loucura contagiou os que, através da verdade, enfrentam a realidade. A infelicidade está no fato de se achar normal seres que vivem na ilusão.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador. Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco
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