A Fome Expõe Realidade e Vergonha –
O Brasil de Volta ao Mapa da Fome: Triste Memória de um Debate Secular
Recentemente, tratei do tema da escalada atual da fome como uma figura repetida daqueles álbuns de infância. O mais surpreendente dessa evidência desoladora é mesmo ter imaginado que o tal álbum estivesse fora de contexto. Ou melhor, para ser preciso e contundente, que o mapa da fome não mais considerasse o Brasil como um integrante. Em suma: nem figurinha, nem figurante.
No entanto, o tema está de volta, como uma dura resposta à falta de vigor econômico, à piora das formas de desemprego e às distintas condições que definem os níveis de pobreza. Tudo junto e misturado se traduz em insegurança alimentar, cujo subconjunto mais extremo aponta para o pior dessa realidade, representado por 33 milhões de cidadãos brasileiros em situação de fome. Retrato da apetência de muitos insensíveis.
Não estranhe, caro leitor, que haja algo ainda pior, por trás desse número. Trata-se de um quadro social tão adverso quanto desigual, posto que tem CEP, gênero e cor. Uma pesquisa recente da FGV já mostrou a realidade de que só 50% das mulheres negras da população em idade de trabalhar (cerca de 24 milhões) participam do mercado de trabalho. E que ganham menos que os homens de qualquer raça e mulheres brancas. Um péssimo indicativo, que só corrobora outras pesquisas, onde a fome atinge mais de perto, chefes de família – mulheres, nordestinas e negras.
Triste realidade, que só me aguça o sentimento de vergonha por essa situação. O mesmo acanhamento que gerou reação semelhante, quando a jornalista que recebe e tolera meus textos neste veículo, manifestou-se diante de um anterior. Nele, expressei a barbárie da fome como algo improvável, justo para um governo que destila sua empáfia quando propaga, por exemplo, a conquista da tecnologia 5G. Em situações racionais, quando há desequilíbrios expostos, apostar na confiança silenciosa me parece bem mais louvável. “Olhar para o interior do próprio interior”, como insinuava Vander Lee, numa das suas composições.
De pronto, vale realçar que o envergonhar-se, é ouvir e enxergar a dor da realidade. E muitas vezes ela está do nosso lado e nem precisa ir muito longe para vê-la. Talvez num simples caminhar e disso perceber como estão as esquinas brasileiras, abarrotadas de gente que não tem a vergonha de expor a fome no semblante. A mesma coragem para enfrentar esse drama está na fala de quem sobrevive com baixos salários, mesmo na formalidade empregatícia. São cidadãos que percebem seu distanciamento de uma mínima dignidade humana, porque já não tem o mesmo poder aquisitivo para comprar o leite e a carne, que outrora garantiam proteína à sua mesa. Uma conquista anterior, que cabe aqui colocar, começou com o Plano Real, no governo FHC.
Dizia o grande Millôr Fernandes: “a pobreza não é, necessariamente, vergonhosa, porque há muitos pobres sem receios de ter vergonha”. Nessa condição de exclusão, a dureza da vida ensina. Resta a indignação para os que têm alguma empatia.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador. Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco
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