PONTO DE VISTA DE ALFREDO BERTINI

Minha reverência ao último gênio da TV –

Desde minha infância, não sou apenas um integrante da geração televisiva, que explodiu a partir da segunda metade dos anos 60. Assumidamente, sou um voraz consumidor dos conteúdos de TVs, que hoje dão sentido à essa poderosa indústria que chamamos de audiovisual.

Por também exercer, de forma plena e soberana, minha opção pelos modos de entretenimento propostos pela competente TV que o Brasil produz, desde a difusão da sua primeira imagem, seria natural que, no bojo das minhas preferências, optasse por programas e ídolos. Desse jeito, fiz minhas escolhas e aqui revelo minha idolatria por dois nomes dignos de reconhecimento e gratidão. Não só pelo que fizeram para o público. Pois muito também fizeram na geração de oportunidades para novos talentos – e até para talentos esquecidos pelo tempo.

Dentre tantos conteúdos, sempre reconheci dois ícones sagrados da TV brasileira: Chico Anísio e Jô Soares. A recente partida de Jô me leva a crer que a TV perdeu seu derradeiro gênio. Um espaço que ele compartilhou com Chico, nesse meu pedestal da genialidade, muito bem exercida em favor de um padrão de qualidade, inerente a TV brasileira.

Embora o óbvio seja para mim imperativo neste assunto, o que dizer de Jô para dar sentido a tamanha genialidade. De pronto, digo que havia nele, em convívio harmonioso, vários Jôs. O multiartista, capaz de criar, dirigir e interpretar? Em qualquer dessas funções, alguém capaz de por sua inteligência a serviço de um humor ácido e refinado? Ou seria ainda o literato poliglota, além de profundo conhecedor de alguns estilos musicais? Talvez ainda o entrevistador que fazia do seu programa uma extensão do sofá de casa, com entrevistados que bem representavam a pluralidade e a democracia? Em tempos tão difíceis para a cultura brasileira, a perda de Jô é mais um exemplo de vazio que toma conta deste triste cenário

Ao final, cabe-me uma reverência bem pessoal, num contexto em que me sinto uma espécie de “privilegiado, sem a devida intensidade”. É que noutras ocasiões externei aqui algumas oportunidades que a vida me propiciou, entre as quais conhecer figuras talentosas e até geniais, no sentido físico de chegar e estar próximo. Melhor: de conversar e trocar algumas ideias. E mais: até mesmo de estabelecer conexões mais extensas. Pelé foi o mais marcante de todos, mas no caso de Jô, foram dois simples encontros, mas que me marcaram o suficiente, para que os lembrasse como uma reverência, por tudo que representou sua obra cultural. Isso tem um significado quando me ponho como um fã, desde quando fez o simpático mordomo de “A Família Trapo”. E, depois, vê-lo estrear na TV Globo, em 1971, no “Faça Humor, Não Faça Guerra” e se consagrar no “Viva o Gordo” e depois no talk show “Programa do Jô”.

No primeiro contato, uma situação bem diferente, de quem estava na plateia e teve que subir ao palco. Foi nos meus tempos de São Paulo, na apresentação de seu show “Viva o Gordo, Abaixo o Regime”. Ao final, para entregar um presente de um patrocinador, arriscou uma consulta se havia alguém de fora da cidade. Não pensei duas vezes e me identifiquei na plateia. Entre ser chamado por ele e receber de suas mãos o brinde, um misto de satisfação e expectativa. Satisfação por ver de preto um ídolo. Expectativa de que fosse alvo de alguma brincadeira. Prevaleceu a primeira.

Depois, numa oportunidade que gerou uma boa conversa, no Festival de Cinema do Rio. Num evento festivo realizado na histórica Ilha Fiscal, quando do lançamento do filme “O Xangô de Baker Street” , ele declinou de uma homenagem que o Cine PE gostaria de lhe fazer. Com toda sua elegância e do alto da uma modéstia exemplar, disse-me: “fiz pouco pelo cinema para receber essa honraria”. E reforçou: “depois da fila andar e eu fizer mais pelo cinema, aí você me refaz o convite”.

A fila andou. Ele fez muito pelo cinema e por tantas outras artes. Assim, entre a idolatria longeva e a homenagem irrealizada, lembro da propriedade de um aforismo de Murilo Mendes. É que em certas situações, parece que o Criador não faz moldes para suas criaturas geniais, razão pela qual lhe pareceu cabível “intimar o Criador sobre a piada da criação”.

Para quem se colocava na condição de mandar o “beijo do gordo”, agora cabe a mim e tantos admiradores registrar em definitivo o “beijo no gordo”.

 

 

 

 

 

 

Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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