Manifesto Civilizatório pela Valorização do Nordeste Brasileiro –
Uma lembrança histórica, referente ao massacre da “noite de São Bartolomeu”, foi revisada na minha mente. E justo no dia que os católicos comemoram “todos os santos”. Claro que não mentalizei um conflito religioso, da forma que se deu naquela noite parisiense de 24 de agosto de 1572. Na plenitude dessa realidade kafkiana que fulminou o Brasil, vi-me envolvido noutra circunstância. Algo bem diferente, embora que contagiado pelos horrores de conflitos, que já foram mais silenciosos e até tolerantes. Hoje, infelizmente, vivemos golpeados por agressões mais estridentes e até intolerantes. Mas, qual foi mesma a razão desse novo massacre, que tanto me marcou?
No meu hábito noturno de – por vezes – garimpar conteúdos nas telas da TV ou do celular, comecei bem a sessão, quando assisti à aula de conhecimento sobre a sociedade brasileira, através da entrevista desse competente pensador que é Eduardo Giannetti (no programa Provoca, da TV Cultura). Lições de humanismo com propostas para um desenvolvimento socioeconômico sustentável. Confortante. Mas, o pior estava por vir, quando assisti ao programa “Profissão Repórter” (TV Globo);e a dois conteúdos difundidos naquela noite pelas redes sociais. Um terror!
Com base no material assistido e para referendar o que chamo aqui de um “Manifesto Civilizatório” parto de uma frase do genial Albert Einstein, a saber: “é mais fácil desintegrar um átomo, do que um preconceito”. Antes silencioso, sutil, sarcástico ou até mesmo explícito, vivia-se numa sociedade que, mesmo exercendo uma opressão estrutural, conseguia impor uma situação do que chamo de “tolerância constrangedora”, sobretudo, para o oprimido.
Os tempos são outros e cabem distinções. Só que as possibilidades ampliadas de comunicação farta, para serem exercidas pelo indivíduo, em nome de uma liberdade de expressão tão ilimitada quanto agressora, trouxeram à tona as reações dos massacrados pelo preconceito.
No programa televisivo citado, a matéria expõe com clareza o antagonismo político que pautou as últimas eleições. Não apenas ficou clara a brutal distinção do voto pelo viés do nível de renda. A grande massa eleitoral de Lula sempre esteve abaixo da faixa de dois SM. Certamente que nesse estrato, estão negros e mulheres que sustentam famílias.Também é da natureza estrutural do padrão de desenvolvimento que ditou nossa economia, que a maioria desses excluídos estivesse no nordeste brasileiro. Isso foi posto e constatado. O que não compôs o roteiro foi a demonstração sutil dada por alguns sulistas eleitores de Bolsonaro, que defendiam a tese de que a disposição ao trabalho, a desvinculação da dependência do Estado e coisas que o valham pareciam não caber no povo pobre do país. Esse modo de por a questão em voga deixou implícita uma vontade de dizer que os eleitores de Lula, nordestinos na sua maioria, votavam nele porque queriam benefícios por conta de uma inapetência pelo trabalho.
Pior que isso foram duas situações extraídas das redes sociais que, de tão agressivas, deveriam ser identificadas e submetidas à legislação penal pertinente. Uma delas é um típico exercício narcisista e supremacista de quem impõe sua condição de renda e dai seu total desprezo pela condição de pobreza. Nisso, tal figura repugnante desdenha dos nordestinos. Outra agressão parte de uma dirigente do clube de futebol (e esposa do Presidente) que é considerado das massas e que, por força de um privilégio midiático, conta com milhares de nordestinos como torcedores, por mais contraditória que pareça a fala da tal dirigente. Do alto da sua condição de Vice-Presidente de Responsabilidade Social (pasmem os leitores), agride gratuitamente o povo nordestino por sua escolha eleitoral. E, ironicamente, assumindo sua hipnose psicótica como integrante do “gado”, disse que deixar de produzir ou morrer isso significaria “matar os carrapatos de fome”.
Basta. Assim como o resgate do débito que temos com o preconceito estrutural dirigido à nação negra secularmente escravizada, chegou a hora dessa gente nordestina fazer valer sua história. Não basta apenas invocar nossos papéis expressivos nas riquezas naturais. Nem muito menos através dos talentos criativos e capitais humanos diversos, que engrandecem nossa cultura, ciência e tecnologia. É preciso apostar num verdadeiro Manifesto Civilizatório. Algo que seja capaz de exprimir ques nossos esforços por uma cidadania nacional meritória são maiores que os tratamentos pejorativos.
Tentar rebaixar a grandeza do nordestino como “baiano, paraíba, cabeçudo, cabeça chata, passa fome, preguiçoso, burro ou agora carrapato”, merece como resposta o enquadramento como crime de injúria ou mais. Ademais, que esse Manifesto possa ser um tratado na formação educacional, no sentido de formar crianças e jovens livres dessas demonstrações de preconceito. Se entendo que a violência contra mulher prescinde da orientação escolar sobre uma civilidade aplicada aos meninos, dar o devido valor ao Nordeste passa pela consciência de uma formação semelhante, que respeite os valores intrínsecos aos nordestinos.
Não me custa apelar para os sulistas (e sudestinos), amigos ou desconhecidos, que não concordam com essa forma de preconceito, que não silencie diante dos horrores. Creio nisso. Sou orgulhoso do modo gaúcho de ser (até me sinto um pernambucho, por tudo que vi e vivi no universo riograndense). Sou neto de uma catarinense de Lages, onde certamente tenho parentes desconhecidos. E sou ainda ligado a queridos amigos paranaenses. Digo para vocês: nada mais significante para celebrar que se buscar uma união humanizadora, por mais diferentes e distantes que possam ser nossas realidades.
Alfredo Bertini – Economista, professor e pesquisador, Ex-Presidente da Fundação Joaquim Nabuco