POR QUEM OS SINOS NÃO DOBRAM –

“Aos omissos, está reservada a antecâmara do inferno”. (Dante Alighieri, in Divina Comédia)

Em que pese a falta de memória do brasileiro, todos ainda lembramos da comoção (comedida, contida no interior dos lares) que tomou conta do Brasil como reflexo do assassinato da menina Isabela, fato que pode ser explicado pela dor profunda que nos envergonha, enquanto seres humanos.

Todavia, lamentavelmente, esse caso não é uma exceção: no Brasil.

Todos os dias, 30 crianças e adolescentes são assassinados no Brasil. Em 2015, foram registrados 10,9 mil homicídios com menores de 19 anos, segundo dados do departamento de informática do Sistema Único de Saúde (Datasus). Essa população corresponde a praticamente um quinto de todas as vítimas de homicídio no país. Os bebês não escapam da brutalidade e, segundo pesquisa do Lacri – Laboratório de Estudos da Criança, da USP, apenas 10% dos casos de violência física e psicológica em crianças é notificado. E o percentual dos “arrependidos” de ter filhos, sem planejamento, é maior entre as pessoas de menor renda (a maioria da sociedade). Com um agravante: a violência doméstica infantil é mais velada que a violência urbana. Vizinhos fingem não saber. A grande maioria é omissa, como se não fosse co-responsável.

Essa realidade é a mesma dos espancamentos e assassinatos de mulheres e de jovens na faixa entre 16 a 24 anos, compondo a banalização da vida, em cenários do inferno cotidiano de milhões de miseráveis morais, guiados pelo individualismo, e motivados para o ter, o ter mais.

Acrescente-se a isso a ausência de valores na Família (desestruturada), na Escola defasada em relação à complexidade do mundo pós-moderno, mutante, onde tudo é descartável; e teremos o caldo de cultura eivado de armadilhas que induzem à violência.

As crianças estão cada vez mais entregues à própria sorte, à televisão, à internet ou ao traficante. Quase nunca mantêm contato com o calor humano das relações familiares educativas (respeito, solidariedade, perseverança, tolerância, onde até o castigo físico era – antigamente – para corrigir e moralizar, era uma forma de amor), nem com os exemplos dos mestres inesquecíveis, nem com os grandes nomes da história ou da literatura; e muito menos com os valores universais que deveriam presidir as nossas instituições.

Aliás, já existe uma tese (do francês Charles Melman) de que, “pela primeira vez na história, a instituição familiar está desaparecendo, e isso tem conseqüências imprevisíveis”.

Tudo indica que, com raras exceções, o mundo contemporâneo vivencia uma crescente inversão de valores. Sobretudo, vivemos num mundo eivado de hipocrisia, cuja estrutura moral ameaça ruir; e o deus-mercado domina quase todas as instâncias da vida.

Em pleno século XXI, lanço um olhar sobre o Planeta e vejo que as mesmas potências que desenvolvem a ciência para a vida, estimulam a indústria da morte.

Prega-se a virtude, mas pratica-se a falsidade generalizada: um falso compromisso, uma falsa democracia, uma falsa justiça, uma falsa liberdade, uma falsa eterna juventude, uma falsa estética.

Dói constatar que as instituições que deveriam assegurar a Justiça e a Ética, em nosso país, num gesto muito estranho, não raramente desmoralizam seus próprios pilares.

Como orientar, preparar o espírito do jovem adolescente que adentra cada vez mais cedo na selva da vida? Como os jovens reagirão frente à inexistência de parâmetros morais?

Será que não cabe mais perguntar “onde vamos parar? ”.

Será que já chegamos ao inferno mais profundo?

Para reverter essa tendência suicida, e evitar a barbárie, é urgente eliminar a miséria e a fome, urbanizar os espaços degradados, organizar as comunidades, universalizar o ensino fundamental e médio, valorizar a escola e resgatar o papel do professor, garantir a qualidade e vincular a escola ao mundo do trabalho, da ciência e da cultura, através de uma “Lei de Responsabilidade Educacional”.

Resumo da ópera: nenhum de nós é inocente nesse sentido, e não é ético virar as costas. Estamos todos conectados. Não existe separação entre nós e o que fazemos uns aos outros.

Ah! Nestas eleições de 2018, mais de 40 milhões de brasileiros foram omissos.

E não esqueçam que, em Dante, aos omissos está reservada a Antecâmara, o lugar mais quente do Inferno. Por serem tão perniciosos, nem o capeta permite sequer que os omissos adentrem ao círculo natural do inferno.

Resumo da ópera: é pelos omissos que os sinos não dobram.

 

Rinaldo Barros é professor – [email protected]

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