PORQUE HOJE É TERÇA-FEIRA –
Hoje, madrugada de uma terça-feira qualquer, ás 4h40, ela foi desperta pelos raios acanhados e fortes de sol, que insistiam alumiar, pouco a pouco, pelas frestas da janela, a noite que voejava o seu quarto. O sol nessa época do ano dá as caras logo cedinho – a incidência solar é maior devido ao fenômeno Solstício de verão, renascendo mais cedo a cada manhã, num céu amarelo-alaranjado, entre o canto dos pássaros, na estação do ano marcada pelo aumento das temperaturas, em dias mais longos e noites mais curtas.
Sentia aquelas palavras martelando nos seus pensamentos. Ela ainda estava deitada, no entanto, como de costume, tinha, mais uma vez, acordado na madrugada, fazendo da sua cama seu divã. Entre conjecturas e lembranças, saltou da cama trazendo consigo todos os pensamentos que a madrugada lhe trouxera, lembrando do que havia dito e escutado na noite anterior. Realmente, ela não era mais a mesma. Muita coisa havia mudado nesses últimos 20 meses. Coisas boas vieram, não podia negar, mas, muitos atropelos a fizeram cambalear.
Talvez ela realmente seja uma mulher de pouca fé. Sim, talvez ela seja muito cabeça dura, uma tremenda guexa. E, por isso, esteja ficando irreconhecível, não só pelos quilos que tem se somado nos últimos tempos, mas também pelos acontecimentos que quase a levaram a lona.
Nocauteada, isso mesmo, várias vezes pensou em jogar a toalha. No entanto, ela não esqueceu que hoje é terça-feira, de uma semana qualquer, de um ano que se finda e deixa muitas marcas. É por isso, porque hoje é terça-feira que ela levantou, vestiu a malha da academia- meio mofada, guardada no fundo da gaveta das roupas pouco usadas- calçou os tênis coloridos e empoeirados, fez o coque no alto da cabeça, deslizou o creme dental sobre as cerdas da escova, fitou-se frente ao espelho, e, antes que pudesse iniciar seu ritual de escovadela, alguém do outro lado, o reflexo que a encarava, lhe dizia:
– Mulher de pouca fé, o que está esperando para tomar conta da única coisa que lhe resta, a vida?
“Viver é simples!” ela já filosofava no sábado passado: “Nós quem complicados. O ato mais nobre da vida é o respirar e nem nos damos conta das vezes e os momentos que inspiramos e expiramos a fonte da vida”. Caminhar, comer alimentos saudáveis, ler, meditar… mudar hábitos. Afinal, o que ela estava esperando?
Desceu as escadas do prédio, fechou o portão atrás de si e caminhou, sem olhar para trás. Entrou na academia depois de exatos doze meses da última vez que fez 40mim de esteira, renovou a mensalidade por mais 30 dias, era o que ela precisava naquele instante, saber que poderia caminhar nas madrugadas, exercitando a mente e o corpo.
Olhou em volta, ainda haviam poucas pessoas no recinto, visualizou a velha esteira que não era sua melhor amiga, mas, algo lhe dizia que um dia poderia vir a ser. Venceu a inércia que se apossara dela naqueles instantes que se sucediam a decisão que havia tomado, não podia recuar. Subiu da esteira que ficava no canto da janela, um pouco mais distante da TV, que tanto a distraia, vendo os telejornais da manhã. Não via problema nisso, havia decidido que, naquele momento, precisaria de um tempo a mais consigo mesma, para digerir o que a madrugada a fez regurgitar.
Hoje, terça-feira de uma semana qualquer do último mês de um ano que ficará para sempre marcado em suas lembranças, já em casa, tomou um copo de limonada com adoçante, o sabor hoje lhe pareceu mais doce que antes. Anotou’ na agenda o peso que a balança da academia lhe conferiu e guardou a foto tirada no dia anterior.
Quanto tempo uma mulher de pouca fé, que se modifica a cada dia, tornando-se quase irreconhecível, vai durar nesse desafio?
Subir, cair, subir, cair…
Teria de escalar mais um Everest, mais um de tantos que já escalou. Algumas vez chegando ao topo, outras, rolando monte abaixo, e assim, recomeçando, subindo e rolando ladeira abaixo; recomeçando, subindo e rolando ladeira abaixo…
Enquanto vida lhe restar.
Flávia Arruda – Pedagoga e escritora, autora do livro As esquinas da minha existência, flaviarruda71@gmail.com
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