Com tochas, túnicas coloridas e capuzes pontiagudos, homens vestidos de farricocos, que representam os soldados romanos, tomam as ruas da cidade de Goiás anualmente durante a Procissão do Fogaréu. A performance relembra a perseguição a Jesus Cristo, para prendê-lo, e faz parte das celebrações da Semana Santa.

Para entender a história por trás da construção estética da performance e mostrar os bastidores da procissão que atrai milhares de fieis, o g1 foi até o Quartel do XX, ou “quartel-geral” da procissão, onde ocorrem os preparativos, e ficam guardadas as vestimentas nos dias que antecedem a data da celebração, que acontece na Quarta-feira Santa.

Ao g1, a pesquisadora em antropologia Izabela Tamaso explicou que o processo de criação dos símbolos e personagens da procissão envolveu estudos da liturgia e do contexto histórico que registraram as primeiras aparições da figura do farricoco – conheça a história da procissão no final do texto.

A partir de textos encontrados na Igreja de São Francisco de Paula, localizada na cidade de Goiás, a iconografia da encenação foi resgatada pela Organização Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT), em 1965.

“No Livro de Receitas da Irmandade, datado de 1745, há referência ao pagamento a um farricoco, o que levantou questões sobre o significado do termo ‘farricoco’. Essa expressão, em alguns lugares, se refere a encapuzados. Assim, a iconografia do farricoco, um personagem central na Procissão do Fogaréu, foi estabelecida”, explicou a pesquisadora.

A iconografia da procissão foi desenvolvida pela artista plástica Goiandira do Couto, uma das fundadoras da OVAT. Izabela Tamaso destacou que a estética dos farricocos não foi inspirada nos guardas romanos, mas sim nas procissões de penitência medievais, onde os pecadores buscavam o anonimato e, por isso, ficavam encapuzados para não serem identificados.

“[A Goiandira] Pensa nos guardas romanos, não como guardas romanos, como eles sempre são caracterizados. Ela vai pensar numa vestimenta que fosse relacionada aos pecadores penitentes das procissões de penitência que aconteciam na Europa medieval. Eles vestiam esse capuz com essa roupa comprida. O capuz era exatamente porque os pecadores não queriam ser identificados, estavam na procissão pedindo perdão pelos pecados”, contou a professora.

 

Assim, a construção dos elementos da Procissão do Fogaréu ocorreu em 1965, a partir de textos do século 18 encontrados na Igreja de São Francisco de Paula e de referências da Europa medieval.

As vestimentas dos farricocos são frequentemente comparadas às usadas pelo grupo de supremacia branca Ku Klux Klan – que usam túnicas brancas e capuzes cônicos. Entretanto, segundo o presidente da OVAT, Rodrigo dos Santos e Silva, os elementos simbólicos têm significados distintos e as referências da procissão datam de períodos muito anteriores à criação da KKK.

Os primeiros registros da KKK são de 1865, quase um século depois da menção dos farricocos nos textos encontrados na Igreja da cidade de Goiás.

Ao g1, Rodrigo dos Santos e Silva explicou que o padre espanhol João Perestrello de Vasconcellos Spindola, fundador da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos e o mentor da Semana Santa na cidade de Goiás, trouxe elementos da sua formação religiosa na Europa para reviver tradições na cidade goiana. Em 1745, então, ele introduziu a Procissão do Fogaréu na cidade.

“As pessoas acham que o nosso é novo porque se coloca 1965 como data de fundação da OVAT, que é quando ela resgata e empreende essa tradição, por isso se acha que a produção do Fogaréu poderia ser copiada de algo que veio antes, nos Estados Unidos. Mas não, muito pelo contrário, nós copiamos aquilo que era nosso, nós reinventamos a nossa tradição através daquilo que já existia lá em 1745”, disse Rodrigo.

“Então, nós não podemos ser confundidos como um movimento que busca segregar a população. Muito pelo contrário, a gente atrai toda a multidão, todos os fiéis, para a igreja evangelizar”, completou.

 

A pesquisadora Izabela Tamaso também destacou que o processo de criação das túnicas do farricocos não faz nenhuma alusão ao grupo dos EUA. “Quando a Goiandira vai criar a vestimenta do farricoco, ela pensa exatamente no penitente. Então, ela não associou a essa ideia que subsidia, que está por detrás da vestimenta da Ku Klux Klan. Não é a mesma. Não tem o mesmo sentido”, disse.

Como é a Procissão do Fogaréu?

Quando a procissão começa, as luzes da cidade são apagadas. Então, os 40 farricocos, ao som de tambores, partem da igreja da Boa Morte. Eles cruzam a ponte do Rio Vermelho em direção à Igreja do Rosário, onde não encontram Cristo.

A jornada continua, atravessando a cidade até a Igreja de São Francisco de Paula, que simboliza o Monte das Oliveiras. Lá, os farricocos cercam o prédio e prendem Jesus Cristo. O percurso é de aproximadamente 1,5 km e os farricocos percorrem o trajeto descalços.

Preparação

O Fogaréu é um evento que atrai milhares de pessoas. De acordo com o presidente da OVAT, a preparação demanda meses de antecedência e o esforço de muitos voluntários, que se dedicam a tarefas que vão desde funções burocráticas até reparos nos figurinos.

“A resistência do fogaréu acontece não só pela questão da atração cultural e religiosa em si. Há pessoas que valorizam, preservam e salvaguardam esse legado. Elas sabem as suas funções e o que tem que ser feito para para que a coisa aconteça”, afirmou Rodrigo.

 

As roupas usadas no Fogaréu e em outras procissões da Semana Santa são lavadas e passadas à mão. Em seguida, são levadas ao Quartel do XX, onde os personagem se vestem no dia do evento. “São praticamente três dias de intenso trabalho das passadeiras para trazer as roupas impecáveis para a cena. E tem o voluntariado, que são as pessoas que vêm, que ajudam a conservar, que ajudam a organizar a procissão. Se não tivesse esse número, talvez a gente não teria a Procissão do Fogaréu como um bem cultural intangível da cidade de Goiás”, disse Rodrigo.

O presidente da organização destaca que, apesar da performance da procissão ser um momento de muita emoção, os bastidores também carregam muito afeto e tradição.

“Tudo que há por trás da procissão é carregado de sentimento, de valores, de costumes e de simbologias. Ela é afetiva. Às vezes quem tem mais os dons da costura vai lá e tampa um buraquinho que foi queimado pela fuligem. Isso é feito para que a peça continue resistindo. Assim como a nossa história, a nossa tradição, a nossa fé”, contou Rodrigo.

Por baixo das túnicas

O presidente da OVAT explicou que apenas homens encenam os soldados durante a Procissão do Fogaréu. Os voluntários se candidatam para participar da caminhada e são encaixados conforme as vagas disponíveis.

Para se tornar um dos personagens, é necessário ter uma altura mínima de 1,60m, para que as túnicas, que são de tamanho único, sirvam. Além disso, é necessário participar do ensaio realizado na Quarta-feira Santa, algumas horas antes da procissão. Também é orientado que os participantes não consumam bebidas alcoólicas durante o evento.

Rodrigo destacou que, embora a figura do farricoco seja exclusivamente masculina, ao longo da Semana Santa as mulheres têm a oportunidade de participar de outras apresentações.

História

Élder Camargo e Goiandira do Couto foram os dois principais criadores da versão atual que conhecemos do Fogaréu. Os dois participaram, na década de 60, da criação da OVAT. No entanto, a história do Fogaréu na cidade de Goiás tem início em 1745, com a chegada do padre João Perestrello de Vasconcellos Spindola à cidade de Goiás.

Ao resgatar os escritos de 1745, na Igreja de São Francisco de Paula, Goiandira e Élder fizeram mudanças no que se tinha da celebração original, como data do evento e número de farricocos. No entanto, conforme o presidente da OVAT, houve sempre a preocupação de manter o máximo de elementos possíveis de uma procissão para outra.

“Houve modificações quando a OVAT resgatou a procissão e a reintroduziu nesse cenário cultural e religioso na Semana Santa. A procissão começou com um farricoco e ao longo dos anos, à medida que a OVAT conseguia mais adeptos e que a tradição foi muito bem recebida pelas pessoas da localidade, foram aumentando os números dos farricocos, que hoje chega a 40 homens encapuzados”, contou Rodrigo.

 

Originalmente, a Procissão do Fogaréu acontecia na Quinta-feira Santa, mas, no dia também eram realizadas outras cerimônias e, por uma questão de logística, ela foi transferida para quarta-feira, assim, os participantes não teriam que correr de uma celebração para outra.No entanto, apesar dos ajustes, há uma preocupação da organização de fazer o mínimo de mudanças possíveis no decorrer dos anos.

“Dos anos 90 para cá é praticamente a mesma cena que você vê. A gente toma esse cuidado de manter a tradição viva sem perder sua característica, sua essência. Ela tem o lado da oração. Ela tem o lado da penitência. Ela tem um lado representativo da perseguição de Jesus, da prisão. Mas ela é, acima de tudo, esse elemento que agrega, que congrega do mais simples ao mais graduado dentro da cena”, concluiu Rodrigo.

Fonte: G1

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