QUEM É O MÉDICO (OU JUIZ) E QUEM É O MONSTRO? –
Robert Louis Stevenson (1850-1894), escocês com formação em direito, foi romancista, poeta, ensaísta, boêmio e, ainda, um grande viajante. Autor de romances, como “Treasure Island” (1883), “Kidnapped” (1886) e “The Master of Ballantrae” (1889), é hoje mundialmente conhecido, sobretudo, por sua novela “The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde” (de 1886 e entre nós conhecidada como “O médico e Monstro”). Seja para o teatro, para o cinema, seja para a televisão, “The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde” tem dado ensejo a inúmeras adaptações, cada vez mais caindo no gosto do público. Seu enredo gira em torno de Dr. Jekyll, um médico que descobre uma “fórmula” que dá a ele a possibilidade de tranformar-se em um “outro”: Mr. Hyde, personalidade que absorve todos os instintos malignos do seu criador. Essa repulsiva personalidade vai paulatinamente ganhando ascendência sobre o ser criador, a ponto de cometer homicídio. Cada vez com mais frequência, Dr. Jekyll se vê transformado, involutariamente, em Mr. Hyde, sem que as drogas que toma façam mais efeito no sentido de reverter o processo. Prestes a ser descoberto e preso, Dr. Jekyll/Mr. Hyde comete suicídio. Retratando em cores aberrantes a dupla personalidade da(s) personagem(ens), do ponto de vista moral, Stevenson busca mostrar como o bem e o mal podem coexistir em uma mesma pessoa.
Poucos, entretanto, já ouviram falar de “Weir of Hermiston”, segundo os críticos e o próprio Stevenson, a obra-prima que ele, morto prematuramente de hemorragia cerebral, deixou inacabada. Stevenson, já vivendo nas Ilhas Samoa e com a saúde debilitada, trabalhava em “Weir of Hermiston” no dia de sua morte, vindo o romance a ser publicado postumamente, mesmo que inacabado, em 1896. “Weir of Hermiston” paga tributo a pelo menos três importantes aspectos da vida de Stevenson. Sua fixação por “dualidades”, sua nacionalidade escocesa e, não menos importante, sua formação em direito. Sabe-se que Stevenson, em 1871, abandonou a engenharia, profissão do assim desgostoso pai, para dedicar-se ao estudo do direito, tendo sido aceito na Ordem dos Advogados escocesa em 1875 (Scottish Bar), mas sem nunca haver de fato exercido qualquer carreira jurídica. Foi ser escritor. Ainda bem.
Em “Weir of Hermiston”, Stevenson explora uma forma de dualidade “edipiana”, contando a vida de Archie Wier, orfão de mãe e filho único de Adam Wier, Lord Hermiston, juiz famoso por seu pendor – e prazer – em mandar “seus” réus para a forca. Conhecido pelo apelido de “The Hanging Judge” (algo como “o juiz enforcador”, numa tradução livre), a personagem está baseada numa figura da história escocesa, Robert Macqueen, Lord Braxfield. O romance basicamente ganha corpo com o conflito entre as duas personagens principais, quando o filho assiste a um julgamento presidido pelo pai, em que este, com prazer incontido, manda um réu, o miserável Duncan Jopp, à forca. O filho publicamente confronta o pai, perorando contra a pena de morte, e é banido para a interiorana vila de Herminston. Com esse novo pano de fundo, a obra segue seu curso centrado em uma estória de amor entre Archie Wier e a personagem Christina. Pelas anotações do autor, sabe-se que Archie Wier, mais tarde, seria acusado de homicídio (de Frank Innes, acusado de haver violado sua amada Christina) e o romance terminaria com uma final confrontação, na Justiça, entre pai e filho.
Mas a dualidade “interna” da personagem Wier Pai também nos chama a atenção. Ele (assim como sua inspiração histórica, Lord Braxfield) era homem de grande reputação (merecida, sob muitos aspectos), mas, como visto, deleitava-se ao punir alguém. Usando de seu dialeto escocês – para que o patético réu não pudesse sequer entender o que se passava, como hoje em dia muito se faz com o “juridiquês” – assim o fez, com “selvagem prazer”, com Duncan Jopp. Não se sabe, porque Stevenson não nos diz, que crime teria cometido o infeliz, apenas registrando que sua vida teria sido uma história de desgraça e covardice. Àquela época, ele poderia ter ido à forca, a depender do pendor do juiz, até pelo furto de um pedaço de pão (ou, pior, indaguemos: teria mesmo Duncan Jopp cometido algum crime?). E mais: a duplicidade do caráter do Weir Pai é exposta ao tratar de forma aterradora o réu, humilhando ainda mais o já humilde. Como diz o Wier Filho, uma coisa é atacar um tigre, outra é pisotear um pobre coitado. O Wier Pai pune o “vilão” com uma vilania igual ou pior.
Mas será que o Wier Pai, “The Hanging Judge”, teria condenado o Wier Filho à forca (levando em consideração, claro, que ele não estaria impedido de julgar, como o seria certamente hoje)? Ou, “moralmente” alquebrado e hipócrita (como todos nós pecadores somos), absolveria o filho? Infelizmente, o “Contador de Estórias” ou “Tusitala” (como Stevenson era chamado pelos samoanos) não viveu para nos contar.
Quanto a nós, seria preciso lembrar ao leitor as vezes em que ele deparou com alguém – juiz, promotor ou mesmo pessoa do seu convívio – que, sob a máscara de vestal, tem, na verdade, prazer na desgraça alheia? Ou de alguém que é um leão com os mais humildes e um doce com aqueles que não o são? Às vezes porque se acha acima dos pobres mortais, às vezes por um complexo de inferioridade mal resolvido. Acusar ou condenar alguém, estou certo, não deve ser um prazer. Faz-se por dever e com a cortesia devida aos mais e aos menos afortunados. Isso sem falar na absurdez intrínseca à pena de morte.
Finalmente, cá entre nós e Stenvenson: dá para você me apontar, em “Weir of Hermiston”, quem é médico (ou juiz) e quem é o monstro?
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
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